Cenas de 'Pobres criaturas' acendem debate sobre prazer e objetificação feminina nas telas
Especialistas discutem até que ponto a mulher é protagonista ou vítima da própria sexualidade
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— São Paulo
01/04/2024 05h01 Atualizado há um dia
A bancária paulistana Débora Paulino, de 38 anos, foi cheia de expectativas assistir a “Pobres criaturas”, premiado com quatro Oscars. O filme fez barulho pelas cenas de sexo de Bella Baxter, personagem de Emma Stone. Espécie de Frankenstein feminina, ela vive seus impulsos sem pudores, mas o resultado frustrou Débora. “Mais um filme feito por homens usando atrocidades cometidas contra uma mulher como ponto focal. Na maioria das histórias, elas estão peladas ou caladas”, resume. Ao conversar com o amigo, o consultor de políticas públicas Thiago Barbizan, foi confrontada. “Cresci acompanhando Madonna e suas composições sobre empoderamento feminino. Quando a mulher se apropria do sexo, fala com naturalidade, e ao usá-lo para conseguir algo, é criticada”, diz ele.
Até que ponto a mulher é protagonista ou vítima da própria sexualidade? Emma defendeu as cenas, dizendo que são “fiéis à experiência de Bella”. A discussão trazida nas redes sociais pelo longa do grego Yorgos Lanthimos, que já tinha ganhado força com o movimento #MeToo, criado em 2017, denunciando o assédio sexual na indústria do cinema. Um caso notório é do filme “Azul é a cor mais quente”, de 2013, quando Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux foram obrigadas pelo diretor a gravar cenas de sexo por horas. Por trás das câmeras, as mulheres seguem sendo minoria. Pesquisa da Universidade Estadual de San Diego revela que das 250 produções americanas de maior bilheteria em 2023, só 16% tinham diretoras no comando. No Brasil, dados do Observatório do Cinema Audiovisual apontam que, entre 2018 e 2023, elas estavam à frente de apenas 19,2% dos filmes.
“Mulheres contam histórias dando profundidade às personagens femininas, incluindo experiências sexuais”, explica a professora da FAAP e diretora de formação do Instituto Mais Mulheres Lideranças no Audiovisual Brasileiro, Luciana Rodrigues. “A nudez será naturalizada se não alimentar a objetificação. Mas, o status quo se ressente se o objetivo não for o prazer masculino. Nossos corpos só podem ser vistos nus se forem objetos de desejo, mas não para o nosso prazer”, complementa.
Precursora da discussão sobre gênero no cinema, a britânica Laura Mulvey fala, na tese “Prazer visual e cinema narrativo”, de 1973, sobre o olhar objetificador do homem e a maneira de retratar as mulheres nas artes visuais. Essa definição ganhou, então, o termo male gaze (olhar masculino, em português. O grupo Guerrilla Girls, de ativistas feministas americanas, em seu manifesto mais conhecido, também fala sobre o male gaze nas artes, afirmando que “menos de 5% dos artistas nas seções de Arte Moderna dos museus são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.
Mais do que peitos e bundas para o deleite do espectador, o problema se agrava na posição das mulheres nas narrativas, analisa a pesquisadora Paloma Coelho Silva, da Fiocruz Minas. “Não só sexual, mas de submissão e passividade dos papéis femininos, de acordo com a vontade masculina.” Paloma chama a atenção, ainda, para o recorte de raça, destacando a hiperssexualização das mulheres negras e a ínfima participação delas em histórias com enredos significativos. “De quais ‘musas’ negras você se lembra?”, questiona.
Ainda assim, as mulheres lutam para virar esse jogo. Além de coordenadores de intimidade que protegem atores em cenas de sexo simulado, algo conquistado com o #MeToo, muitas participam ativamente da construção da história, empoderando-se do desejo de suas personagens. Protagonista de “Bom dia, Verônica”, da Netflix, Tainá Müller credita à confiança na equipe seu conforto em cenas íntimas. “Sexo faz parte da vida. Mas não me ‘jogo’ em qualquer cena, porque sei que é algo muito explorado. Preciso entender que ela não é fetichizada”, diz a atriz.
Diretora do longa “O livro dos prazeres”, de 2020, baseado na obra de Clarice Lispector, Marcela Lordy resgata o histórico do Brasil no audiovisual, principalmente na época da “pornochanchada”, nos anos 1970, reforçando a tese do fetiche citada por Tainá. “Por que fecham tanto o plano na bunda, no peito? É uma cafonice.” Por isso, sua protagonista, vivida pela atriz Simone Spoladore, celebra o próprio prazer em cenas delicadas feitas por olhos e mãos femininas. “Sofremos muita opressão, mas estamos ressignificando nosso prazer e nosso lugar no mundo. Lutamos para ter direito à voto e só agora, em 2024, o aborto virou lei na França. É um longo caminho, mas sou otimista”, finaliza.
Fonte:https://oglobo.globo.com/ela/noticia/2024/04/01/cenas-de-pobres-criaturas-acendem-debate-sobre-prazer-e-objetificacao-feminina-nas-telas.ghtml
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