'SENTI NÁUSEA E APAGUEI. NÃO LEMBRO DE MAIS NADA': TUDO SOBRE BOA NOITE CINDERELA E COMO SE PROTEGER DO GOLPE

  

Boa Noite, Cinderela: o que é o golpe, como se proteger e o que fazer se você for vítima — Foto: Getty Images

‘Senti náusea e apaguei. Não lembro de mais nada’: tudo sobre Boa Noite, Cinderela e como se proteger do golpe

No primeiro ano de faculdade, Jéssica*, então aos 19, viajou com os amigos para participar dos jogos universitários no interior de Minas Gerais. Em uma festa do evento, chegou, pegou dois drinks do bar e foi encontrar uma amiga. Depois de conhecer os amigos dela – incluindo um homem que julgou suspeito, por ter sido “pegajoso demais” com ela –, as duas se distanciaram para voltar ao grupo de Jéssica.

A violação consiste em misturar substâncias como medicamentos e drogas em bebidas alcoólicas de outras pessoas, sem consentimento, para realizar crimes que vão de violência sexual a extorsão e roubo. Psiquiatra pesquisadora sobre drogas na USP expõe a Marie Claire quais são as substâncias mais usadas, como agem no corpo e o que fazer se você for uma vítima

Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo (SP)

02/02/2024 11h46  Atualizado há 9 horas

 Foi quando, em menos de cinco minutos, a estudante universitária começou a sentir que algo estava errado. “Estranhei ter ficado desse jeito com só um drink – o segundo copo ainda estava cheio. Comecei a me sentir mole, um pouco tonta e enjoada. Minha amiga me levou até um banheiro, mas percebi que não queria vomitar. Quando saí, ela me sentou em um degrau de concreto e apaguei. Não me lembro de mais nada”, narra.

Jéssica acordou no dia seguinte em sua barraca, sozinha, com um sangramento no braço esquerdo. Ao buscar o presidente da atlética, soube que a amiga chamou os bombeiros. Ela foi encaminhada de ambulância ao hospital, onde recebeu uma injeção de glicose – ela não realizou nenhum exame no local. Até hoje, ela não sabe bem o que aconteceu.

Ao longo destes 11 anos, é forte a suspeita de que pode ter sido dopada por outra pessoa, sem saber ou consentir. “Foi uma sensação horrível, e lembro que fiquei com medo de beber álcool o resto do evento, mesmo sabendo que não tinha exagerado. Nunca mais tive um apagão, mesmo bebendo doses maiores. Até hoje, quando bebo em público, deixo meu copo sempre perto de mim e tampo a abertura do copo com a mão”, conta.

Por mais que não tenha certeza de quais substâncias foram usadas para dopá-la e quais eram as intenções da pessoa que o fez, Jéssica acredita que pode ter sido vítima do golpe Boa Noite, Cinderela, quando uma pessoa – desconhecida ou não – dopa outra, a ponto de ela apagar.

Geralmente são misturadas substâncias, como drogas e medicamentos triturados, a bebidas alcoólicas em festas, bares, restaurantes ou outros contextos como o Carnaval, que é quando o consumo de bebidas e outras drogas aumenta consideravelmente.

“O ato de entorpecer alguém contra vontade da pessoa não é exatamente crime no Brasil”, explica a advogada Isabela Del Monde, consultora do movimento Me Too Brasil e uma das fundadora da Rede Feminista de Juristas. “Mas esse tipo de prática acontece para o cometimento de outros crimes, como estupro de vulnerável, extorsão, roubo, furto ou acesso indevido às redes sociais, e-mail e contas bancárias da pessoa entorpecida.”

A psiquiatra e pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da Universidade de São Paulo (USP) Camila Magalhães Silveira diz que, por muito tempo, o golpe Boa Noite, Cinderela era conhecido como facilitador para o cometimento de crimes sexuais – sobretudo estupro, tendo mulheres como principais vítimas.

No entanto, ela afirma que, atualmente, esse cenário mudou. Tanto mulheres quanto homens podem ser vítimas, e a motivação, atualmente, tem sido aplicar golpes financeiros, acessar contas bancárias ou praticar roubos de dinheiro ou itens pessoais. Esta motivação é maior quando a violação é aplicada a homens.

No caso das mulheres, ainda é comum que a dopagem tenha como intuito o cometimento de violência sexual. Por isso, é motivo de alerta e gera precauções como não aceitar bebidas de estranhos, só comprar bebidas na rua quando estiverem lacradas ou não deixar drinks sem supervisão.

“Por vezes, pode ser que nem aconteça uma violência sexual ou física, mas, para mulheres, é bastante traumático a sensação de perder o controle e a consciência. A longo prazo, há um peso emocional muito grande – inclusive, quem passa pelo golpe sente muita vergonha em denunciar, contar para pessoas conhecidas ou buscar o serviço de saúde”, diz Magalhães.

Quais são os remédios e drogas usados no Boa Noite, Cinderela?

Segundo a psiquiatra, existem diversas drogas e medicamentos líquidos ou em pó – neste último caso, as pílulas são trituradas e adicionadas sem a vítima perceber em bebidas alcoólicas. Os drinks, taças de vinho e latinhas de cerveja, por exemplo, são “ideais” para o golpista porque o álcool ajuda a potencializar a ação dessas substâncias.

De acordo com pesquisas e com a vivência em ambulatórios que atendem pessoas sob o efeito do álcool e drogas, Magalhães afirma que, atualmente, estas são as substâncias mais comumente usadas para aplicar o Boa Noite, Cinderela:

• Stilnox (ou Zolpidem): indutor de sono e hipnótico conhecido pela ação rápida;
• Midazolam: benzodiazepínicos com efeitos sedativos, comumente usado como anestésico em endoscopias;
• Rivotril: entre os antidepressivos, o Rivotril é um dos medicamentos mais detectados em golpes desse tipo;
• Cetamina (ou quetamina): um medicamento anestésico geral, de ação hipnótica, que tem sido usada em contexto recreativo;
• GHB: ecstasy líquido, é uma substância de ação psicodélica.

"Como muitas vítimas não denunciam e não passam por exame toxicológico, e temos poucos estudos farmacológicos sobre o assunto, sabe-se pouco sobre quais substâncias são usadas. O que sabemos é que, com o avanço da medicina, as substâncias usadas para cometer o crime são aprimoradas”, explica a psiquiatra

Por mais que seja mais relacionado à combinação não consensual de álcool e outras substâncias, Magalhães alerta que há casos em que apenas o consumo de álcool pode gerar o efeito desejado por golpistas: o de apagão. “Às vezes o golpe não é premeditado – quando alguém troca sua latinha de cerveja e coloca alguma coisa dentro –, mas é oportunista. Alguém pode se aproximar da vítima e começar a induzi-la a beber mais ou fazer misturas para fazê-la apagar – sobretudo na população mais jovem, incluindo menores de idade, que tem bebido mais. Com o aumento do consumo de álcool no Carnaval, por exemplo, aumenta a facilitação de riscos agravados, inclusive de golpes.”

Quais são os efeitos no Boa Noite, Cinderela?

Magalhães explica que, antes de chegar no apagão (conhecido como blackout), existem outras etapas pelas quais a vítima passa depois de ter sido entorpecida.

Primeiro, a pessoa fica mais desinibida, seguido de um estado de relaxamento que pode ser acompanhado de euforia. Depois, entra em um estágio de sedação, em que pode sentir mais cansaço, rigidez nos músculos, ritmo mais lento e mesmo sono. O próximo estágio é o coma, em que fica desacordada e pode perder a memória do que viveu sob o efeito da substância.

A psiquiatra diz que todo esse roteiro pode ser sentido quando uma pessoa bebe muito álcool. Mas, com o acréscimo destas substâncias, esses estágios são vividos mais rapidamente e de maneira mais intensa.

O apagão pode ser dividido em duas categorias: o blackout total e o blackout parcial. Neste segundo caso, Magalhães explica, a pessoa se lembra apenas de flashes do que viveu enquanto estava entorpecida. Isso acontece porque, ao depender da substância e por estar em um espaço público, cheia de estímulos externos, algumas áreas do cérebro continuam em estado de atenção. “Isso impede o corpo de ceder completamente.”

Sinais que indicam que uma pessoa foi dopada

Segundo a psiquiatra, alguns sinais que significam alerta de dopagem vividos por vítimas do Boa Noite, Cinderela são:

• Comportamento inapropriado
• Sonolência
• Falar rápido ou de maneira pastosa, arrastada e enrolada
• Marcha mais lenta e dificuldade de equilíbrio
• Quedas
• Formigamento
• Mal estar
• Náusea

“Quem estiver acompanhando a pessoa entorpecida deve ficar de olho em comportamentos considerados estranhos e fora do comum, mesmo quando não há efeitos agudos. Por exemplo: alguém que bebeu pouco e está alterado, sem justificativa de que esteja em estado de embriaguez tão rápido e intenso”, indica Magalhães.

Quanto tempo duram os efeitos de remédios e drogas do Boa Noite, Cinderela?

Magalhães ilustra que cada dose de bebida alcoólica equivale a uma lata de cerveja; uma taça de vinho de 14 ml; ou até 45 ml de destilados. O organismo leva 1 hora para ser metabolizado pelo organismo destas quantidades.

Quando existem outras substâncias incluídas na bebida, o tempo de ação vai depender da quantidade ingerida e o tipo de droga ou medicamento adicionado. No geral, pode levar de 4 horas a 6 horas para que o efeito passe.

A psiquiatra diz, por exemplo, que a combinação entre álcool e Midazolam pode levar 4 horas para passar. Já a combinação com Zolpidem, por induzir o sono, tem ação mais prolongada, podendo levar de 7 horas a 12 horas (em casos mais raros) para passar. Em casos de medicamentos benzodiazepínicos (que são ansiolíticos e hipnóticos), essa previsão de metabolismo pode ser de até 10 horas.

Tem como cortar o efeito de drogas e remédios usados no Boa Noite, Cinderela?

Infelizmente, não existe um antídoto ou método certeiro capaz de cortar os efeitos das substâncias do organismo, tampouco do consumo excessivo de álcool.

No entanto, a psiquiatra responde que é importante que a pessoa se mantenha hidratada e, se for necessário, induza o vômito para tentar liberar o corpo das substâncias. “Mas, em geral, aquele álcool já foi metabolizado – ou seja, já desceu do estômago. Se não tiver nada ali, é preciso esperar a pessoa procurar um serviço de emergência para avaliação médica, exame toxicológico [que pode ser feito com amostra de urina ou sangue] e esperar passar.”

Para que a vítima se sinta confortável, o ideal é que a pessoa fique em observação em um lugar calmo, sem muitos estímulos externos. No atendimento hospitalar, a pesquisadora reforça que, nestes casos, lavagem estomacal ou mesmo o uso de soros não são indicados. “O melhor é tratar sintomas pontuais, como náuseas e dores de cabeça, com medicamentos sintomáticos.”

Fui vítima de Boa Noite, Cinderela. O que fazer?

Caso perceba que esteja sob efeito inesperado que cause estranheza, o ideal é agir rapidamente. “A pessoa precisa falar com alguém de confiança imediatamente, porque isso pode avançar em pouco tempo para uma sedação, e ser direcionada ao serviço de saúde”, orienta Magalhães.

O procedimento padrão é que sejam realizados exames gerais – inclusive para entender se a vítima sofreu algum tipo de violência sexual – e toxicológicos – que devem ser feitos rapidamente, já que as substância só ficam detectáveis nas primeiras 10 horas e 12 horas após a dopagem. “O exame toxicológico é importante até para que possamos rastrear quais são as substâncias que estão sendo usadas.”

Quando o crime é cometido contra mulheres, também soma-se a este procedimento diretrizes previstas na Lei do Minuto Seguinte (nº 12.845/13), como a administração da pílula de emergência, de medicamentos antirretrovirais e amparo multidisciplinar, por exemplo.

A advogada Isabela Del Monde encoraja que seja realizado um boletim de ocorrência em delegacias. Por mais que não haja uma lei específica que ampare pessoas que foram dopadas sem consentimento, a polícia pode abrir o BO para investigar quando há casos de violência física ou crimes como roubo, extorsão ou acesso a contas bancárias ou dados privados, por exemplo. O entorpecimento pode ser um fator que aumente a pena do crime.

A advogada explica que, caso a vítima recorrer à polícia primeiro, o padrão é que seja encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML) para realizar um exame toxicológico. “No entanto, eu aconselho que se busque o serviço de saúde primeiro. A equipe de assistência social pode fazer o encaminhamento à polícia depois”, enfatiza Magalhães.

Cuidados para se proteger de Boa Noite, Cinderela?

Não aceite bebidas de desconhecidos; não deixe sua bebida sem supervisão e, se isso acontecer, descarte o líquido. Observe se há alteração do aspecto e gosto da bebida; dê preferência a bebidas lacradas.

Em contexto de festas ou datas comemorativas, como Carnaval, Magalhães afirma ser muito comum o compartilhamento de bebidas e outras substâncias em grupo. Nesses momentos, o cuidado deve ser redobrado, sobretudo quando há aproximação de pessoas desconhecidas.

Outro ponto relevante é prestar sempre atenção nas pessoas que compõem seu grupo em contexto de festa. “Não deixem de andar juntos e se ajudar”, completa a psiquiatra.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/violencia-de-genero/noticia/2024/02/qual-e-o-remedio-do-boa-noite-cinderela-como-se-proteger-golpe.ghtml