SEXUALIDADE, IDENTIDADE, COLONIALISMO: ESCRITORA PERUANA USA A PRÓPIA HISTÓRIA PARA CUTUCAR O PASSADO DA AMÉRICA LATINA

  Literatura kamikaze. “A cada dia que passa me sinto cada vez menos ‘uma verdadeira escritora’”, diz Wiener, de ascendência indígena e austríaca, que lança “Exploração”: escrita não convencional

Sexualidade, identidade, colonialismo: escritora peruana usa a própria história para cutucar o passado da América Latina

Uma das autoras mais irreverentes na região, peruana Gabriela Wiener lança, no Brasil, o ensaio 'Exploração'

Por 

María Sánchez Díez 

Em The New York Times

10/10/2023 03h30  Atualizado há uma semana

Quando a escritora peruana Gabriela Wiener era criança, não gostava de passeios escolares a museus em Lima. À medida que a turma se aproximava das estátuas de cerâmica pré-colombianas conhecidas como “retratos huacos”, ela começava a tremer. Os rostos das estatuetas, representando membros da cultura moche, têm uma semelhança inegável com o dela. A gozação era inevitável: “Olha a Gabriela!”. Parecer indígena, ser pardo e não branco no Peru dos anos 1980 significava ser feio, indesejável — ou pelo menos foi o que ela sentiu por muito tempo.

— O colonialismo não é algo que aconteceu no passado. Ele continua a pulsar nas nossas vidas, nas nossas camas, nas nossas famílias, na nossa sociedade — diz ela em Nova York, em frente a uma destas estátuas no Metropolitan Museum.

Décadas depois, os retratos huacos não são mais dolorosas memórias de infância para Gabriela, talvez a voz mais irreverente e ousada da nova geração literária de mulheres latino-americanas. As esculturas tornaram-se um instrumento para se “descolonizar” e recuperar a sua identidade, espinha dorsal de seu romance “Exploração” (Todavia, 2023).

O livro explora um conflito central para a identidade da escritora. Ela é morena, uma “chola” orgulhosa, para usar o termo depreciativo peruano para designar descendentes de indígenas. Mas ela também é provavelmente descendente de Charles Wiener, explorador austríaco que se tornou francês, viajou para o Peru no século XIX e ficou conhecido por quase encontrar Machu Picchu: ele chegou a Ollantaytambo, onde os moradores locais lhe contaram sobre uma cidade inca abandonada ali perto. Wiener menciona o nome em suas anotações, mas nunca chegou às ruínas.

Charles Wiener deixou um rastro de violência e pilhagem que o romance examina, misturando fato com ficção. O que se sabe sobre seu histórico é que quando, trocou o Peru pela França, levou milhares de artefatos pré-colombianos — incluindo retratos huacos — que ajudaram a construir o acervo de um museu etnográfico da capital francesa. Num livro que escreveu sobre as suas expedições ao Peru, Charles também descreve a compra de uma criança que seria levada para a Europa.

Em troca, o explorador deixou um filho que teve com uma indígena — início da linhagem mestiça que, segundo a história contada pela família, daria origem a Gabriela Wiener. Reconstruindo os passos do patriarca e entrelaçando a história pessoal e oficial, ela desmascara seu ancestral como a força que moldou muitas de suas feridas.

A conclusão? Gabriela quer descolonizar tudo: o estatuto da branquitude como representante da beleza, a mitologia em torno de Charles Wiener num clã que ainda se orgulha do seu apelido de sonoridade europeia, os segredos de família.

Gosto por pornografia

“Exploração” não é o primeiro livro em que Gabriela luta inabalavelmente com verdades incômodas. Para os leitores familiarizados com seus livros e entrevistas, pode parecer que ela explorou praticamente todos os problemas espinhosos com os quais a sociedade se debate hoje.

— Intimidade, vulnerabilidade, vergonha, escuridão, o que mantemos em silêncio... Essas coisas são minha criação e materiais artísticos — diz ela. — Isso também faz do meu trabalho uma denúncia.

Além da raça, o sexo também esteve no centro do trabalho dela. Em 2008, trabalhando como jornalista, Gabriela escreveu “Sexografias”, uma coletânea de histórias em primeira pessoa que exploram, sem restrições, vários aspectos da sexualidade. Ela escreveu abertamente sobre seu gosto pela pornografia e suas experiências com a doação de óvulos, sobre a ejaculação feminina, sobre um encontro sexual com uma estrela pornô e sobre visitas a clubes de swing.


Antes de o poliamor se tornar popular, antes de a expressão “não monogamia ética” se popularizar nos aplicativos de namoro, a escritora peruana já falava sobre o complexo relacionamento poliamoroso que mantinha com seu marido de longa data, o poeta Jaime Rodríguez Zavaleta, e com uma mulher espanhola.

— Todas as minhas histórias são sobre essas pessoas de quem sou próxima, mas falam sobre questões que dizem respeito a todos nós — diz ela.

Escrever abertamente sobre as pessoas em sua vida a colocou em apuros, mas ela lhes dá muito crédito por seguirem em frente:

— Eles são coescritores comigo. Me entedia muito toda essa ideia de individualidade do artista.

Apresentador do podcast “Radio ambulante”, o romancista e jornalista peruano Daniel Alarcón apoia Gabriela, que vive na Espanha desde 2003:

— Ela está sempre ultrapassando os limites e tentando garantir que esses temas e questões não sejam tabus. E está sempre abrindo portas para nós.

Alarcón apresentou Gabriela em um episódio sobre feiura, durante o qual a escritora desvendou o que significava para ela se sentir feia e catalogou todas as suas imperfeições percebidas.

— Meus dentes tortos. Meus joelhos pretos. Meus braços gordos. Meus seios caídos. Meus pequenos olhos circundados por duas bolsas pretas. Meu nariz brilhante e granulado. Meu cabelo preto de bruxa.

O inventário continuou indefinidamente. E o que aconteceu depois foi exatamente o que ela esperava:

— Muitas mulheres vieram me dizer que isso as tinha libertado dos seus próprios complexos físicos. É isso que acontece. Você cria algo e isso pode se tornar algo que mobiliza coisas.

Feminista antirracista

Esta abordagem não convencional e kamikaze da escrita levou os críticos, por vezes, a rotular o seu trabalho não como literatura, e sim como “testemunho”, diz ela. Mas a escritora não está nem aí para o que os críticos literários pensam:


— A cada dia que passa me sinto cada vez menos “uma verdadeira escritora”. E com orgulho.

Feminista antirracista declarada, Gabriela denuncia furiosamente, entre outras questões, o colonialismo espanhol. Ela destaca, por exemplo, que o dia 12 de outubro — em que se comemora a chegada de Colombo ao continente americano — é o principal feriado nacional da Espanha. Quando soube, durante esta entrevista, que Manhattan também tem uma estátua de Colombo, ela insistiu em conhecê-la.

— Lá está ele, ofendendo e machucando as pessoas, tão rechonchudo, no meio de tudo, em um lugar absolutamente central e intocado — comentou, antes de tentar escalar o pedestal.


Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/10/10/sexualidade-identidade-colonialismo-escritora-peruana-usa-a-propria-historia-para-cutucar-o-passado-da-america-latina.ghtml



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