Há um pacto velado entre os homens, que gera sofrimento tanto aos próprios quanto às mulheres. É a partir desse pacto que se forma a masculinidade tal como a conhecemos, impulsionada pela violência e alimentada por uma noção de poder tóxica. O conceito é de Rita Laura Segato, antropóloga argentina que defende a ideia de que essa construção só é possível em mundos patriarcais e, por consequência, machistas. Para ela, o tal pacto orienta uma “construção fálica da masculinidade”, na qual meninos são socializados para não ter empatia, não expressar emoção e, especialmente, não enxergar as mulheres como seus iguais, mas como um outro objetificado e subserviente, a quem não se devem trocas honestas e vulneráveis.
Essa “identidade destrutiva” também encontra manifestação no sexo dos homens. Quem nos lembra da teoria da antropóloga argentina é a psicanalista Natália Parolin Bonini, fundadora do Divam (Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres), que afirma: “Reduzir a masculinidade ao falo só leva a um caminho, o de torná-la nociva, agressiva e aprisionante”.
Se falamos então de sexualidade, Natália insiste: “Somos diferentes e multifacetados, todo mundo tem lado feminino e masculino e integrá-los nos torna melhores. Passou da hora de admitirmos as possibilidades da masculinidade além do falo, do gênero ou do genital. Precisamos permitir que as pessoas se sintam livres para exercer suas personas e desejos, na vida e no sexo. Isso nos fará mais tolerantes e gentis conosco e com quem nos relacionamos”.
A seguir, quatro homens transgênero refletem sobre o tema.
Ian Belisário tem 23 anos, vive em Niterói e é tatuador
“Quando era mais novo, me sentia diferente, mas só conhecia a palavra ‘sapatão’, que era um tabu. Ainda assim, ‘sapatão’ era a tradução mais próxima do que eu sentia. Por isso me identificava como lésbica e me relacionava apenas com meninas. Até tive alguns casos com meninos. Não sentia atração por eles, era algo imposto socialmente. Fazia porque achava que seria mais bem aceito. Com uns 16 anos, cheguei a me interessar por alguns caras, mas não seguia adiante, pois sabia que precisava estar em uma ‘posição feminina’ na relação, o que me incomodava e assustava. Depois da transição, refleti sobre isso e percebi que o problema não era a relação sexual e afetiva em si, e sim a posição na qual era visto e colocado. Perdi a virgindade só após transicionar, aos 18 anos. Foi com a minha primeira namorada, então um garoto gay que mais tarde transacionou de gênero.
Embora tenha sentido atração por pessoas antes disso, reprimi o desejo pois não aceitava o meu corpo, mais em específico o meu genital. Lembrando que rejeitar o genital não é regra para toda pessoa trans. Aconteceu comigo e não precisa ser assim com você. Hoje, convivo bem com todas as partes do meu corpo. E sei que o tempo, nesse caso, importa e influência.
Como se espera, a tendência de reproduzir o machismo é comum no meio transmasculino, pois nossa identidade está completamente ligada (ou tem como referência) ao padrão cisgênero e heteronormativo. Muitas vezes, por inclusão, refletimos o que está posto. Por outro lado, há, sim, um cuidado maior diante da sexualidade das mulheres, acho que exatamente por já termos vivido em um corpo socialmente feminino e passado por situações em que o machismo esteve presente. É por saber na pele como as mulheres são tratadas que muitos de nós tentam não repetir os comportamentos tóxicos e egoicos próprios da masculinidade no sexo. Ter vivido essas situações serviu de aprendizado para que hoje, como homem, eu não reproduza o mesmo com a minha parceira – há dois anos e meio estou num namoro monogâmico com Amber, que é travesti.
Não me interesso por usar dildos e acessórios. É desconfortável, além de sentir que estou reforçando um estereótipo de cisgeneridade diante da ‘necessidade’ do falo e da penetração em uma relação sexual. Não concordo com esse pensamento, ele não me satisfaz. Pessoas trans tendem a explorar bastante o corpo do seu parceiro, consequentemente descobrem formas inovadoras de ter prazer no sexo, independentemente de ter ou não as próteses. Já ouvi muitos rapazes dizerem que os usam para afirmar uma certa masculinidade, ainda que não sentissem prazer nenhum com os acessórios, enquanto a vagina do homem permanece sendo sempre inferiorizada. Confesso que comprei dois modelos super-realísticos de pênis no meu primeiro ano de transição e que só serviram para tentar disfarçar minhas inseguranças da época.
A fetichização de homens trans é um assunto pouco falado. Comigo, acontece bastante online, quase sempre vindo de homens cis, héteros e casados. Eles mandam mensagens querendo saber como é tocar em um homem com vagina. E tudo é feito sem o menor cuidado, pelo contrário, tem muita agressão na linguagem. É muito frustrante e considero até essas mensagens uma espécie de assédio. São pessoas que se propõem a se relacionar exclusivamente por causa do genital. E acham que podem usar nossos corpos para uma experiência, como se estivéssemos dispostos a isso. Mas somos muito mais que a genitália.”
Leo Moreira Sá tem 63 anos, vive em São Paulo, é ator e ativista do CATS – Coletivo de Artistas Transmasculines
“Quando uma pessoa trans assume uma identidade diferente daquela que a cultura lhe designou, não significa que seguirá de forma compulsória o modelo cisgênero. A maior parte da nova geração já entendeu que gênero é uma construção histórica e muitos se declaram não binários, buscando performances individuais diferentes daquelas culturalmente aceitas para a matriz reprodutora homem/mulher. Se por um lado é possível constatar que certos homens trans ainda adotam uma performance comportamental baseada num modelo cisgênero, é possível supor que adotem em suas performances sexuais o mesmo modelo. E que modelo sexual seria? O heterossexual, o bissexual, o homossexual ou nenhuma das alternativas?
Quando uma pessoa trans inicia sua transição hormonizando-se e/ou fazendo modificações corporais, o que as move não é o desejo de se tornar sexualmente mais atrativa e, sim, uma necessidade vital de se sentir mais cômoda com seu gênero autodeclarado. A identidade de gênero, diferentemente do que pensa a maioria das pessoas, não tem nada a ver com sexualidade. Não acredito que exista um “processo de transição” e, sim, um processo de assunção da verdadeira identidade de gênero que é percebida nos primeiros anos de toda pessoa transexual. Eu sempre me identifiquei com o universo masculino, mas passei grande parte da minha vida tentando ser o que eu nunca havia sido. Demorei para entender que sou transexual porque as pessoas da minha geração não tinham referências nem informações que pudessem dar respostas aos nossos conflitos identitários. Quando me assumi como homem trans, fiz a hormonização, retirei as mamas, mas em nenhum momento pensei em mudar os genitais.
Embora eu tenha me relacionado mais com mulheres cisgênero antes da transição, sempre fui bissexual. Mas aconteceu algo muito interessante que surpreendeu a mim mesmo: depois que defini minha identidade de gênero e comecei a atrair não só o olhar das mulheres mas também o dos homens, meu lado gay aflorou de forma explosiva. Em minha nova identidade corpórea, me senti mais à vontade com a atração que sempre tive pelos homens. Há dez anos, tenho me relacionado sexualmente apenas com homens, e todas as vezes são experiências intensas e prazerosas.
Moro em uma chácara, sou muito feliz com meus cachorros e gatos, e depois de muitos anos casado, com sete relacionamentos sérios na minha trajetória, tenho um namorado cis com quem sigo um acordo não monogâmico, bem livre. A gente se fala pela internet e se encontra quando é possível. E, antes que me perguntem: sim, sou completamente passivo com homens cisgênero e jamais me senti ‘mulher’ na cama com eles. No campo dos desejos, existem tantas possibilidades quanto existem pessoas no mundo.”
Tryanda Verena tem 35 anos, vive em São Paulo, é agente de viagem e criador do perfil no Instagram @homemtransbr
“Penso que tenho uma visão um pouco diferente da visão da maioria dos homens trans: acredito que sempre serei uma mulher geneticamente. Tenho 35 anos e fiz a transição de gênero aos 31, o que considero tarde. Não quero deixar para trás o que vivi até aqui, me sinto em paz por ter sido mulher. Aprendi com a minha mãe, uma mulher negra, que precisamos nos amar e amar ao próximo, e isso é meu mote na vida.
Se na adolescência tivesse tido mais informação, talvez tivesse transicionado mais cedo. A internet ainda era muito primitiva e eu me sentia sozinho. Por um lado, foi bom. Quando transicionei, estava mais maduro, pude me informar e refletir a respeito, entender as nomenclaturas e os efeitos da hormonização. Processo que, aliás, fiz sozinho, depois na rede de saúde particular, via convênio, e hoje pelo SUS – acredito que esse seja o melhor jeito porque os exames são muito completos.
Antes, vivia como uma mulher lésbica. Agora, sou um homem trans heterossexual. Por isso, na relação sexual, acredito que entenda as necessidades de uma mulher, afinal já passei por suas dores, seus amores. E gosto de mulher em todas as suas fases. Pode ser cis, pode ser trans. Isso não mudou com a minha transição, são coisas diferentes. Há pessoas relativas – gostam de dar e receber carinhos sexualmente e da troca de penetração –, passivas e ativas. Eu sou um homem trans ativo, portanto não gosto de receber penetração nem sexo oral, mas oferecer. São preferências que podem mudar, é lógico. Estamos em constante estado de construção e desconstrução.
Já me senti fetichizado por mulheres héteros, mulheres trans e homens gays. Acontece muito na internet, onde estou mais exposto. Imaginam que sexualmente sou diferente por causa da mudança no corpo. Recebo cantadas, mensagens descaradas, pedidos de namoro e casamento, fotos que nunca pedi. Pessoas que nunca tiveram relação com pessoas trans fazem isso por causa da curiosidade, ou chame de fetiche. Uma vez uma mulher hétero mandou mensagem dizendo que me achava lindo e gostaria de me encontrar, contou que nunca tinha tido relação com pessoas LGBTQ. Falou coisas que me deixaram envergonhado. Respondi que ficava feliz em saber que ela gostava do conteúdo que eu produzia, mas infelizmente não seria possível algo a mais. Sou casado há sete anos com a Mayara. A conheci quando ela tinha 21 anos. Éramos duas mulheres lésbicas cis, a minha transição aconteceu com três anos de namoro. Com o tempo, ela aprendeu a respeitar o meu espaço, e vice-versa. Ao contrário de mim, Mayara não é militante.
É normal que homens trans tenham necessidade de ter não apenas os aspectos físicos masculinos, mas atitudes masculinas e cisnormativas. Se você é homem e tem consciência disso, quer ficar o mais parecido possível com a imagem que a sociedade tem de um homem, para assim ser reconhecido como tal. Há aqueles que até mesmo reproduzem aspectos da masculinidade tóxica, sendo uma cópia fiel do homem cis padrão. Mas também existem homens trans gays, que não emulam a sexualidade cisnormativa. Mas nem todo homem trans está preocupado em performar. Pessoalmente, acredito que esses são os mais evoluídos. Por exemplo, não me preocupo com dildos e vibradores, prefiro até nem usá-los. Só insiro quando minha parceira faz questão, mas não é bem uma preferência dela.
Tenho todas as características físicas consideradas masculinas, barba, entradas no cabelo, voz mais grossa (embora às vezes fique mais fina). Mas continuo sendo uma pessoa carinhosa, que gosta de beijar, abraçar, brincar, demonstrar emoções. Não tenho medo de me comportar assim, pelo contrário. Às vezes, até me confundem com um homem gay e não me importo, sou bem resolvido. Acredito que cada um é livre para ler o outro da maneira que quiser, contanto que não ofenda. Apesar das mudanças na minha identidade de gênero, a essência continua igual.”
Lui Rodrigues tem 26 anos, vive em Belo Horizonte, é ator, produtor cultural e administrador do perfil no Instagram @mascucetas
“Todas as construções identitárias e sexuais perpassam os mesmos ideais falocêntricos. Quanto uma identidade, não sendo a de um homem cisgênero, pode emular uma heterossexualidade cisnormativa necropolítica? Todas as construções identitárias e sexuais perpassam ideais falocêntricos. Ainda assim, acho que as pessoas precisam parar de assimilar, preguiçosa, precipitada e equivocadamente, as transmasculinidades brancas e negras à masculinidade cisgênera branca e negra. Existem sexualidades que não mantêm esse ideal. Não respondo por uma sexualidade que desprezo, que não me representa e que também me violenta. Não venho desse lugar e não o ambiciono. É impressionante ver que o mundo não sabe nada sobre homens trans: quais são as nossas demandas, acessos e inacessos, nossas narrativas e interseções, mas insiste em falar de nossas existências relacionando à masculinidade cisgênera. A violência da ‘masculinidade’ não vem de doses de testosterona. Não conseguem fazer com que homens cisgênero se responsabilizem ou se sintam culpados, mas conseguem fazer com que homens trans se sintam.
Essa tachação perversa é fonte de depressão e suicídio na vida de pessoas transmasculinas. Minha experiência sexual mudou, porque os anos se passaram, não tem a ver com a minha identidade de gênero. Existo como pessoa trans há cinco anos e minha sexualidade, que já se transformava antes, continua mudando sem sinalizar para uma nova transição de gênero. Acho que é assim para qualquer pessoa, independentemente do gênero. Sexo tem a ver com o que você acredita, e acredito que cada encontro com um novo corpo é uma dramaturgia, um jeito de fazer, uma oportunidade de criar intimidade. Não acredito em script para o sexo. Como lésbica, acreditava que minha sexualidade tinha a ver com a genitália. Hoje, não me apego a essa paixão genitalista. Depois, é que talvez eu tenha ficado mais fechado e me aproximado mais da assexualidade. Enxergo tanta transfobia em cada encontro, que burocratizo mesmo a transa. É o famoso meme: ‘Só queria transar, mas é tanta burocracia’.
Não que a assexualidade nasça de uma opressão, porque não necessariamente. Com minha transição, também entendi que sexo e afeto são privilégios cisgênero, branco, magro e não deficiente. Você me pergunta de que forma ser um homem trans me possibilita um olhar mais generoso e atento com a sexualidade feminina, e te devolvo: ‘sexualidade feminina’ diz sobre quem se entende como mulher ou sobre quem tem vagina? Eu deveria entrar em alguma dessas categorias? Pessoas não binárias, travestis e transmasculinos foram consideradas no enunciado?
Ser uma pessoa transmasculina me possibilita um olhar mais atento ao meu corpo. Já me relacionei com mulheres cis que não tiveram o mínimo de cuidado comigo, ou esperavam de mim uma performance 100% centrada no prazer delas. E eu, entro onde? Sei reconhecer outro corpo, tenho cuidado com a pele do outro, parto do mínimo, exijo o mesmo. O mínimo que aceito é que sejam generosas com este corpo aqui, porque passo muito óleo de amêndoas e hidratante para manter a maciez. Então, não são só homens cis que precisam aprender a enxergar com responsabilidade outros corpos. Se a estrutura binária de gênero se modifica com corpos trans, as violências também se ressignificam e se instrumentalizam em outros corpos.
As próteses – que chamamos de ‘packer’ – servem não apenas para o sexo, mas também para urinar em pé e fazer volume. Alguns se sentem mais seguros e confortáveis com elas. Essas demandas para mim são mais sociais e protetivas que vindas do próprio desejo. As próteses atendem a algumas necessidades de normatização do corpo e também abrem outras possibilidades no sexo, mas não especificam um ‘sexo trans’, até porque não existe um sexo trans, existe sexo. O tipo de sexo que você vai fazer não será definido pelo seu gênero.
Hoje, tem quem pense no prazer e na anatomia das pessoas com vagina. Isso é maravilhoso! Tenho um packer que na parte de dentro tem ondas que estimulam o clitóris enquanto se penetra a outra pessoa. Em comparação, tenho outro mais antigo que evidentemente não foi pensado para um corpo como o meu, inclusive poderia pegar um microfone e amarrar na cintura que teria o mesmo efeito. A existência dos dildos me afeta da mesma maneira que a existência de uma airfryer: se um dia eu quiser, e puder, compro – e ambos são dispensáveis.”
Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Amor-e-Sexo/noticia/2020/10/o-fardo-do-falo-na-sexualidade-partir-das-vivencias-de-quatro-homens-trans.html
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