"AJUDO MEU FILHO DE 11 ANOS A SE MONTAR COMO DRAG QUEEN"

 

A grafiteira Rafa Mon (Foto: Acervo pessoal)

A grafiteira Rafa Mon (Foto: Acervo pessoal)

  • RAFA MON EM DEPOIMENTO A KIZZY BORTOLO
 ATUALIZADO EM 


“Nasci em uma cidade de interior de apenas 20 mil habitantes, no sul de Minas Gerais, chamada Monte Sião. Minha mãe se casou muito nova, engravidou no início do seu primeiro namoro e me teve aos 18 anos. Dois anos depois, nasceu minha irmã mais nova, Paula. Quando eu tinha sete anos, minha mãe se separou do meu pai e a nossa infância foi bem difícil naquela sociedade patriarcal de cidade pequena. Cresci escutando de colegas de escola e também de alguns familiares que eu seria uma menina drogada, perdida e que o meu futuro era algo impensável. Mas, guerreira que só, minha mãe nos criou com pulso firme. Lembro dela virando noites de trabalho bordando e cozinhando para sustentar a casa sozinha. Monte Sião é famosa pelas fábricas de tricô e quase todos os habitantes vivem desta atividade. Com a minha família não foi diferente.

Quando completei 18 anos, minha mãe pegou um dinheiro que ela havia guardado e comprou uma máquina de tricô retilínea, um overloque e nós duas juntas começamos a tecer. O sucesso daquela primeira peça colorida e diferente foi imediato, e logo nós começamos a ganhar mais dinheiro. Em dois anos a nossa malharia de fundo de quintal virou uma pequena empresa com 20 funcionários e já tínhamos duas máquinas italianas que compramos para nos dar suporte. Foi quando decidi estudar moda em São Paulo, deixando minha mãe tocar nossa empresa sozinha. Eu estava com 20 anos.

Lá, tive um ano de luxo e uma vida com que nunca havia sonhado. Morava num apartamento lindo, sozinha, tinha carro do ano, cartões de crédito para gastar e estava em uma cidade grande que eu adorava. Sem saber ao certo o que estava se passando na empresa com minha mãe, superdeslumbrada e gastando muito dinheiro.

Dois anos depois a malharia quebrou por má administração. Do dia para a noite, perdi absolutamente tudo. Todos os cartões, meu carro, o apartamento e até o meu nome, que ficou sujo (a empresa estava em meu nome). Então, com 20 e poucos anos, descobri que tinha uma dívida de quase um milhão de reais e mais de dez processos trabalhistas nas costas. Com isso, decidi pegar os últimos 300 reais que me restavam na carteira e me mudei para o Rio de Janeiro, com a cara e a coragem. 

Em março de 2004, com 26 anos, cheguei ao Rio com muita pouca grana, um emprego que um amigo conseguiu pra mim numa loja de decoração em Jacarepaguá em que ganhava meio salário mínimo e uma quitinete que dividia com uma desconhecida. Minha vida tinha mudado por completo.

Os 300 reais acabaram em duas semana. Me lembro que cheguei a comer meio hambúrguer na hora do almoço para guardar o resto para o jantar, pois não teria dinheiro para pegar as quatro conduções que pegava todos os dias para trabalhar. Aos poucos, fui conhecendo pessoas, lugares e minha experiência com a indústria da moda me ajudou a conseguir outros empregos. E minha vida foi melhorando. Trabalhei demais no Rio para quitar as dívidas trabalhistas que ainda estavam em meu nome. Eu só queria limpar o meu nome.

Em 2006, conheci o pai do meu filho. Tivemos um relacionamento bem complicado, pois os dois eram bem imaturos, apesar da idade -- eu já tinha 29 anos e ele 34. Logo, engravidei. Quando meu filho nasceu eu havia acabado de completar 30 anos e, mesmo sem perspectiva alguma de futuro e contra a vontade do meu companheiro, decidi ter o bebê. Aos trancos e barrancos, ele me acompanhou durante os nove meses que moramos juntos, mas logo que o Davi nasceu nos separamos.

Meu bebê nasceu de parto normal, foram quase 12 horas de trabalho de parto com dores terríveis. Esse processo já me trouxe uma força que eu jamais imaginei ter e que foi muito importante para aguentar tudo que viria depois. Mas, toda vez que eu pensava que não aguentaria mais, Davi me trazia de volta pro mundo! Me tornei uma mulher muito mais potente e guerreira depois dele, capaz de aguentar tudo!

Dois meses depois de o Davi nascer, nos separamos. Novamente, me vi destruída. Sem emprego, sozinha e ainda com uma criança para criar longe de toda a minha família. Tive depressão pós parto e anorexia nervosa. Não conseguia comer nada, perdi 20 quilos. Isso me fez retroceder e voltar à estaca zero. Estava tão destruída psicologicamente que tive que voltar para a minha cidade. Sem nada de concreto e com uma criança no colo.

Minha mãe, que nunca se recuperou da perda financeira que tivemos, estava em um momento muito difícil da sua vida, pois se relacionava com um homem alcoólatra e viciado. Coitada, ela estava completamente perdida em meio aos seus inúmeros calmantes que a anestesiavam das dores da vida. Isso fez com que o nosso relacionamento fosse muito doloroso e difícil.  Mas, por outro lado, meu filho Davi era a luz, a força que eu tinha e que me fazia seguir sempre em frente.

Morei um ano com a minha mãe e depois arrumei um emprego como estilista numa malharia. Assim, pude montar uma casinha para mim e Davi que, desde muito novinho, já ficava em creche pública para que eu pudesse trabalhar. Quando ele completou cinco anos, sua avó paterna, que sempre foi um anjo nas nossas vidas, tinha ficado viúva havia pouco tempo, estava muito triste com a distância do neto e decidiu me ajudar a voltar a morar no Rio. Fiquei felicíssima! Fui superacolhida, vivia em um lar cheio de amor e tinha uma outra mãe cuidando de mim e me ajudando com o meu filho. Minha ex-sogra e eu somos muito amigas e cúmplices. O pai do Davi mesmo, nunca foi muito presente. Mas sua mãe me ajudava com tudo. Com isso, conseguir trabalhos foi mais fácil. Finalmente, a vida estava sendo mais generosa comigo. Mesmo assim, eu ainda estava infeliz de trabalhar com moda. Verdade é que a profissão não me completava mais.

Como, desde criança, era conhecida por meus desenhos, resolvi mudar de área e me reinventar. Aos 35 anos. Entrei em uma papelaria, comprei papeis, lápis, pincéis, tintas e comecei a desenhar. Aos poucos, fui postando em minhas redes sociais alguns trabalhos e os amigos começaram a gostar e a comprar. Tudo aconteceu tão rápido, que nem eu acreditei. Quando vi, já estava fazendo estampas autorais para grandes marcas nacionais. Mas foi na rua onde eu me reinventei totalmente! Nos muros da cidade.

Um belo dia, decidi comprar latas de spray e pintar pra ver se conseguia. E não é que consegui? Aos poucos, e com muita determinação, fui deixando cada vez mais espaços coloridos com as minhas cores e meus desenhos dentro da cidade. Quando eu vendia uma ilustração, já guardava o dinheiro e comprava mais tintas e sprays. E durante todo esse meu começo, meu filho e eu ainda morávamos com a avó paterna dele, no bairro da Ilha do Governador. Ela me ajudava muito, sempre foi minha grande incentivadora nas artes e ficava com o Davi para que eu pudesse trabalhar até tarde da noite. Sem a ajuda dela, certamente nada disso seria possível. Eu trabalhava horas e dias seguidos e, finalmente, estava ganhado dinheiro com o que amava fazer!

Em 2016, conheci o meu atual companheiro e decidimos morar juntos. Estava no melhor momento da minha vida, um trabalho em ascensão, meu nome como artista sendo reconhecido e indo morar com o homem que amo e que também amava meu filho.

Davi sempre foi uma criança iluminada! Nunca tem tempo ruim para ele. Ele é companheiro, amigo e um filho muito compreensivo. Logo de cara, já amou a nova escola, o novo lar e o homem que tinha entrado em nossas vidas. Sempre foi uma criança saudável e feliz, sempre teve muitos amiguinhos, mas logo nos seus primeiros anos de vida, eu já percebi que ele não era uma garoto que iria seguir padrões impostos pela sociedade. No seu aniversário de cinco anos, lhe dei um skate de presente, mas na mesma semana tive que troca-lo na loja por um par de patins, que era o que realmente ele queria. Carrinhos, heróis e blocos de montar nunca estiveram nas caixas de brinquedo lá de casa. Toda vez que ele ganhava algo assim, o presente tinha que ser imediatamente trocado por bichos de pelúcia ou bonecas, pois era o que ele mais se identificava. Cheguei a matricula-lo em aulas de jiu-jítsu, acho que foram os dias de maior sacrifício e angústia para ele, que não se adaptou, não gostava de lutas. 

Minha carreira deslanchou, fechei grandes parecerias com marcas reconhecidas no Brasil e pela primeira vez pude tirar em férias. Ano passado, decidimos fazer uma viagem para a Cidade do México, pois sempre sonhei em conhecer os muralistas e a arte mexicana. Fomos nós três, nos hospedamos em um hotel num bairro chamado Zona Rosa, local bem turístico e popular da cidade. Quando chegamos lá, percebemos que quase todas as lojas e bares do bairro estavam com roupas e bandeiras LGBT, mas não demos muita importância para isso. Alguns dias se passaram lá e num domingo acordamos e vimos uma multidão vestida com as cores do arco-íris na rua do nosso hotel: era a Parada Gay! Uma das maiores da América e nós estávamos bem no meio dela. Imediatamente, comprei acessórios e fomos acompanhar os festejos. Percebi ali, o quanto Davi ficou maravilhado com tudo. As cores, as pessoas... Ele estava com um brilho no olhar diferente e me pediu comprar um boné de unicórnio, que colocou imediatamente na cabeça.

Voltamos do México e na mesma semana Davi me pediu para levá-lo ao shopping para comprar roupas novas. Ele tinha 10 anos. Quando chegamos ao shopping, pude perceber que ele só se encantava por roupas das araras femininas e isso mexeu comigo. Não sei explicar direito o que senti, mas eu sabia que esse momento chegaria, eu sabia que esse Davi já existia, eu notava desde pequeno, mas fiquei surpresa e muito feliz, pois sabia que meu filho tinha se achado! Juro que fiquei feliz e, de certa forma até aliviada, com essa descoberta natural dele. Eu sabia que esse dia chegaria e queria que não fosse um tabu ou que ele se sentisse culpado por algo que já nasceu com ele.

Alguns dias depois, percebi que Davi estava acessando canais de Youtubers gays e que explicavam sobre diversidade de gênero, orientação sexual e muito outros de tutoriais de maquiagens, que ele ama! Nessa mesma semana, ele me contou que tinha como crush um colega da escola e que gostava somente de meninos. Eu perguntei como ele sabia disso, ele disse que simplesmente sabia, assim como eu sempre soube que era hétero.

Meu filho sempre foi muito uma criança segura e feliz, por isso, o fato de usar maquiagem foi algo bem natural também. Fomos ao shopping, ele entrou numa loja de cosméticos e saiu completamente maquiado. Num outro dia, acordou e decidiu que queria usar brincos. Ele estava tão maravilhado com a possibilidade de poder usar mais um acessório que não derramou uma lágrima quando foi furar as duas orelhas. Estava achando tudo o máximo. E eu sempre ali, do lado, o apoiando como mãe.

Desde então, sair para ele se tornou um evento. Davi sempre passa maquiagem e isso inclui batom, sombra, base, corretivo, delineador e tudo mais que se possa imaginar. Esse hábito também rendeu algumas cenas constrangedoras, já outras até engraçadas, porque ninguém acha que ele é um garoto. Acredito que muitos pensam, de fato, que ele é uma menina. Na verdade, como ele mesmo me explicou, ele não tem gênero. Ele se vê assim. Então, deixamos as pessoas o chamarem ou o enxergarem como quiserem. Ele é feliz assim e está tudo certo! Todo esse processo de descoberta sexual e de gênero do meu filho aconteceu muito rápido e veio exatamente no melhor momento de minha vida. Hoje somos uma família de verdade e o nosso lar transborda amor.

Rafa e o filho, Davi (Foto: Acervo pessoal)

Rafa e o filho, Davi (Foto: Acervo pessoal)

Até a relação com o pai melhorou. Ele o aceita bem e sente muito orgulho do filho que tem. Já com a avó paterna a aceitação demorou um pouco mais, mas aconteceu. O amor vence tudo, não é? Ela é uma pessoa extremamente boa de coração, só que é evangélica e sei que, por conta da religião também, pra ela foi muito difícil ver o Davi usando roupas de menina e passando maquiagem no rosto. Só que, agora, ela já fala que aceita melhor. Acho que conseguiu rever todos os conceitos que ela tinha e também os preconceitos. Sei que ela também está ganhando muito com toda essa evolução.

Como mãe, minha única preocupação em relação a sua orientação sexual e gênero é com sua segurança. Então, enquanto eu puder, farei de tudo para mantê-lo em nossa bolha de conforto.  Hoje, o Davi estuda em uma escola que entende e trabalha questões de gênero e sexualidade. Ele está no sexto anos e os seus colegas de sala e amigos são crianças desconstruídas de padrões que, assim como ele, cresceram em famílias compreensivas e amorosas.

Outro dia eu conheci uma mãe de um rapaz de 18 anos que tinha acabado de se tornar drag e ela me falou que ainda não gostava da ideia de ter um filho assim. Eu conversei muito com ela e foi muito legal o papo, essa coisa de você ter empatia, mostrar que a gente também passa por isso e que pode ser visto de uma outra maneira, acho que foi importante. Espero que o meu discurso possa tocar e chegar a outras mulheres que tenham filhos passando por essa descoberta. Porque não tem nada demais, é lindo. É aprender a respeitar e só.

Sem que eu pudesse escolher ou perceber, as causas LGBTQIA+ entraram super na minha vida. Sempre achei que minha arte era uma ferramenta social e política potente e que se eu não a usasse pra passar uma mensagem sobre aquilo que luto e acredito, de nada valeria. Agora, essa sopa de letrinhas, além do feminismo, serão para sempre minhas bandeiras e agradeço ao universo por esse filho maravilhoso que me faz aprender e evoluir como ser humano e como mãe, a cada dia.

Davi é enlouquecido pelo universo das drag queens! Ele já tem até o seu nome de drag, que é Ladiva Mon. Ele ama o programa do Ru Paul, que é um reality show americano superconhecido sobre o mundo das drags. Nunca o vi tão feliz como no dia em que ele se formou no curso de maquiagem para drags.

São momentos como esse que me dão a certeza de estar educando meu filho do jeito certo. Com amor, aceitação e, acima de tudo, compreensão. Deixo meu filho ser livre com suas escolhas, como toda criança tem que ser. Amar para mim sempre foi aceitar e acolher. Por isso, quando ele me pediu para ter uma conta aberta nas redes sociais para mostrar seus tutoriais de maquiagens e o seu dia a dia, achei que já era o momento de dizer para uma sociedade tão intolerante, como a nossa, que aqui na minha família, apesar das diferenças, transborda amor!”

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/EuLeitora/noticia/2019/03/incentivo-meu-filho-de-11-anos-se-montar-como-drag-queen.html


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