O QUE A PSICANÁLISE NOS ENSINA SOBRE AMOR: SOBRE A CAMPO AMOROSO, UM ESTUDO DO AMOR NA TEORIA FREUDIANA
O que a psicanálise pode te ensinar sobre o amor?
“Nós nunca somos tão desamparadamente infelizes como quando perdemos um amor”. Essa é uma das frases mais conhecidas de Sigmund Freud sobre o amor, em parte porque ela não traz consigo nenhum conceito complexo, aproximando-se do ouvinte e porque, em níveis diferentes, faz sentido para todas as pessoas. Afinal, quem nunca sofreu por um amor?
Porém, o que chama mais atenção na frase é sua capacidade de relevar a potência do sentimento mais discutido na literatura e entre todos os seres humanos ao longo da história — e, ironicamente, o que ainda gera mais dúvidas. E por ser encoberto de questões, é também fonte de grande sofrimento psíquico. Em muitos casos, o sofrimento é tão grande que é necessário buscar ajuda de um profissional para que a pessoa possa entender melhor a origem de sua angústia e, assim, aprender a lidar com ela.
Para discutir mais sobre esse assunto, vamos falar um pouco sobre como a Psicanálise interpreta o amor. Confira!
Como o amor é visto pela Psicanálise?
A abordagem de Freud sobre o amor é bastante complexa e envolve diversos ângulos de análise desse sentimento. Para ele, o amor acontece quando há um investimento da libido narcísica no outro. Isso quer dizer que o sujeito passa a enxergar o ser amado como fascinante, ideal. É por isso que quando amamos alguém, o desejo amoroso volta-se todo para aquela pessoa.
O nascimento do amor ou as causas dele são, para Freud, uma condição atrelada a aspectos individuais. Ou seja, o amor nasce de formas diferentes, levando em consideração a memória do sujeito e, consequentemente, aspectos de sua subjetividade. Durante um processo de análise psicanalítica, a pessoa pode descobrir ou entender melhor quais fatos de sua história estão ligados às causas que o levam a amar.
A diferença entre amor e paixão
Os dois sentimentos, embora próximos, são distintos também na área psicanalítica, que distingue a paixão ao afirmar que esta prevê um processo de desvalorização do eu do sujeito que ama. Tal fato explica a euforia que a paixão causa nas pessoas, levando-as, muitas vezes, a atos que não fariam normalmente.
Contudo, os dois sentimentos apresentam aspectos em comum: promovem o estabelecimento de um elo de um sujeito com o outro e seu rompimento causa sofrimento (cada um com proporções específicas).
O amor funciona de maneira diferente para o homem e para mulher?
Vivemos em uma época em que os estereótipos em relação à posição do homem e da mulher estão cada vez mais diluídos. Mesmo assim, nossa sociedade, desde seus primórdios, é patriarcal e isso implica (e ainda vai implicar por muito tempo) em aspectos generalizados socioculturais sobre homens e mulheres. Por exemplo, espera-se que a postura de um homem seja forte e viril, e de uma mulher seja frágil e submissa.
É importante ressaltar isso, pois esse cenário influencia diretamente no modo como os homens e as mulheres lidam com o amor.
No caso do homem, nota-se uma maior dificuldade para lidar com o amor, pois o sentimento representa para ele uma dependência que pode afetar sua posição dominante, de macho alfa. As mulheres, por sua vez, tendem a procurar um homem que desejam e estabelecer com ele uma relação duradoura. Além disso, são mais ligadas a fantasias (muitas mulheres só conseguem amar ou gozar por meio da imaginação).
Mas, como já dissemos, esses papéis estão em xeque atualmente e em um consultório psicanalítico cada paciente é encarado como único, independentemente do gênero, e só por meio de sua fala e observação que acontecerá o processo de análise.
E você, já amou alguém de forma que não conseguisse imaginar sua vida sem aquela pessoa? Ou já passou por um processo de sofrer por um amor muito forte? Conte-nos sua experiência e vamos continuar a conversa!
Fonte:https://psicologorigoni.com.br/o-que-a-psicanalise-pode-te-ensinar-sobre-o-amor/
O Amor na Psicanálise
Falar sobre amor, sexo e desejo também inclui a psicanálise. Como um tema bastante comum, o amor se sobrepõe em diversas fases das nossas vidas e a psicanálise o estuda na sua forma pura e, muitas vezes, incompreendida. Transtornos envolvendo o amor ou o que se imagina ser ele é comumente visto nas análises psicanalíticas, pois por ser algo natural da nossa existência, ele também pode ser confundido com outros sentimentos, como o do desejo, por exemplo.
São sentimentos diferentes que ora se afastam, ora se intercalam. A psicanálise tem um grau de responsabilidade nesse estudo, sendo que uma análise é composta por uma transferência, onde o tema principal é o amor e as suas diferentes formas. Esse conceito de troca pode ser considerado amor de repetição, ou seja, um vínculo capaz de atingir o campo do desejo.
Ao se apaixonar, nós entramos no campo amoroso com uma imagem, onde achamos que o outro nos tem uma imagem própria refletida. Ou seja, encontramos um companheiro que nos permita reforçar a boa imagem que temos de nós mesmos e quando isso é rompido, ficamos totalmente destroçados. Isso acontece, segundo Freud, porque não há outro sentimento que nos deixe tão indefesos e impotentes ou, até, infelizes ao perdermos o objeto amado, como o amor nos faz. Em geral, o primeiro objeto amado que nós temos ao início da vida é o amor de mãe. Ao longo do nosso crescimento, vamos aprendendo que a relação mútua entre os nossos pais é amorosa, pois são os primeiros que nos refletem a segurança de amar, ao saber que esse sentimento nunca irá se perder nesta relação e o significado de dar e receber amor.
É possível escolher quem vamos amar?
A resposta é sim, é possível. Porém não de uma forma racional e intencional, onde colocamos parâmetros de sim ou não na balança, como se faz nas demais escolhas ao longo da vida. Isso se dá no nosso sistema inconsciente. Logo, é por isso que se vê com frequência pessoas buscando ajuda terapêutica sobre os seus problemas amorosos, tentando entendê-los e melhorá-los de alguma forma.
Podemos tomar como base um artigo de Freud, onde ele distingue dois tipos de escolha de objeto de amor, “Sobre o narcisismo: uma introdução.”:
- A escolha narcisista do objeto: Onde nós somos capazes de amar alguém que se assemelhe a nós mesmos, alguém que julgamos ser nosso igual, mesmo que passemos a fantasiar essas igualdades.
- O tipo anexador do objeto: Onde definimos uma função para o objeto amado, ou seja, anexamos a ele uma posição que tenha sobre nós mesmos, como, por exemplo, um companheiro que nos protege.
De uma forma simplificada, ao se apaixonar, o ser humano cria uma imagem para tal, a imagem do outro refletindo algo que admiramos e queremos relacionar ao objeto amado. É devido a isso que, muitas vezes, incidimos de nos apaixonar por alguém que nos transmita algo que nós nunca fomos capazes de ter, mas era desejado profundamente, mesmo que de uma forma errônea.
Segundo Lacan, amar é dar ao outro o que não se tem. Ou seja, é entendermos o que nos é faltoso e dar ao outro. Não significa dar o que temos de sobra, presentes, bens materiais. Para que isso seja possível, nós enquanto seres humanos devemos, primeiramente, entender e garantir o que temos em ausência, para podermos definir o que dar ao outro. É algo totalmente associado ao universo feminino e por isso, diversas vezes, é ridicularizado por parte do homem, que se recusa a assumir o amor acreditando que isso possa afetar a sua masculinidade, sua virilidade.
Fonte:https://insight.org.br/o-amor-na-psicanalise/
Freud, amor e Psicanálise: 7 ideias
Embora seja uma das ideias mais simplistas da humanidade, o amor para Freud possui uma formulação diferente dependendo de onde se olha. Por isso que uma observação sobre ele através da Psicanálise tem bastante a agregar em nossas vidas. Vamos entender melhor a ligação entre Freud, amor e Psicanálise e levantar algumas ideias.
Índice de Conteúdos
Os tipos de amores
Olhando em conjunto o amor e Psicanálise, se conclui que existem variados tipos de amor. Tudo depende da intenção, da motivação inicial sobre cada um deles para classificá-los. Assim, por exemplo, temos:
Amor próprio
É o tipo de amor direcionado ao próprio Ego e com o intuito de levantar a estima. Por incrível que pareça, muitas pessoas possuem dificuldades em construir essa paixão pessoal. Em muitos casos, algum desequilíbrio psíquico colabora com isso, como a depressão ou repressão social.
Amor fraterno
É o amor referente aos irmãos ou mesmo aos amigos mais próximos, os colocando nesta posição. Este acontece quando a construção familiar e social dos indivíduos é muito bem elaborada. Consequentemente, pessoas com laços de sangue ou amigos próximos são solidários entre si, apoiadores e prestativos.
Amor platônico
Sendo o mais “triste” por assim colocar, é o amor sem retribuição evidente. Um indivíduo demonstra sentimentos em relação a outra pessoa, mas esta sequer esboça interesse sobre isso. Geralmente, o indivíduo desejado não tem consciência do que acontece, mas quando descobre também não faz grande caso da situação.
Por exemplo, pense em um amor de adolescente para com o seu professor. Certamente, se ele tiver ética e respeito, por variados motivos, não vai permitir investidas do jovem sobre ele.
O primeiro amor da vida
O amor e Psicanálise andam de mãos dadas em diversos estudos sobre o desenvolvimento humano. Em todos eles ficam bem esclarecido que todos nós temos o nosso primeiro objeto de amor. Sendo a principal doadora de atenção e carinho, independente do sexo da criança, a mãe é o primeiro amor da vida.
Por meio da relação com ela e com o pai, a criança vai assimilar a concepção própria sobre o que é o amor. Assim, usará todas as suas experiências primárias para classificar e catalogar as demais. A exemplo, quem nunca viu a frase “amor, só de mãe”, denunciando até uma certa decepção com algo?
A partir da relação cultivada com os nossos pais estabelecemos as diretrizes da imagem do amor. Veja quem cresceu em um lugar incapaz de ser amado, protegido e cuidado. Dificilmente esse indivíduo finalizará seu processo de crescimento de forma sadia, plena e completa.
Benefícios
Tratando do amor em família, a proposta do trabalho de Freud deixa bem claro o que se alcança com ele. O amor e Psicanálise em estudo mostram que a emissão dessa forte afeição é possível construir:
Empatia
Apesar de parecer bobo, através do amor se aprende lições valiosas, como a empatia. Compreender os sentimentos e sensações do outro somente é possível quando se cresce em lar amoroso. Dar esse tipo de exercício à criança a torna alguém mais receptivo, sensível e construtivo.
Compreensão
Por incrível que pareça, compreender uma situação é uma exercício complicado a muitas pessoas. Isso acontece, em parte, por elas não entenderem a natureza e a dor do outro. A compreensão advém da empatia, aceitação e disposição, elementos que são aprendidos à medida em que desenvolvemos uma relação amorosa.
Perdão
O perdão, na sua real natureza, é a disposição em se livrar da dor causada por outra pessoa. Infelizmente, mas de forma compreensível, nem todos nós somos tão propensos a perdoar por diversas razões. Todavia, a relação de amor anteriormente aprendida ajuda a se desprender dessas mágoas.
A escolha em amar
O estudo do amor e Psicanálise revelam direcionamentos interessantes sobre a paixão. De forma não consciente fica claro que escolhemos nos apaixonar por determinadas pessoas sob algumas condições. Freud afirma que, em parte, isso vem de um desejo narcisista do indivíduo em questão.
De todo modo, a paixão acontece por que nos atraímos por uma imagem de nós mesmos no outro. A idealização se torna um fator decisivo que nos faz nos aproximar de alguém. Aqui se repete a ideia de nos apaixonarmos por nós mesmos, mesmo que não seja uma imagem concreta e real.
Além disso, a paixão pode assumir um tom anexador, algo que como retribuição ao outro. Por exemplo, pense nos casamentos que existem apenas por gratidão de uma das partes em relação ao outro. O “amo alguém porque me protege” ou “amo ela pois cuida de mim”.
Idealismo
É cabível deixar claro que a relação entre amor e Psicanálise não visa a dissolução ou demonização dessa feição. A ideia é entender os mecanismos psíquicos e sociais envolvidos nesse processo de ligamento. Com isso, o idealismo assume papel de observação quando se torna uma pauta tão recorrente nessa relação.
A sensação de alimentar o amor com outra pessoa é se sentir unificado com ela além do corpo físico. Para muitos, as palavras podem ficar ausentes, fazendo com que a compreensão atinja outros níveis. Existe uma aceitação desejada, almejada e cuidada quando é alcançada.
Mas é importante frisar que isso varia de acordo com a pessoa justamente por sua composição interna. Isso fica melhor explicado quando encontramos as perspectivas dos lados de um mesmo relacionamentos. Por mais que se amem, ao seu modo, os cônjuges tem uma visão pessoal do que sentem e do que praticam.
Transferência
No trabalho da Psicanálise existe um conceito relativo à sessão chamado “transferência“. O fenômeno descreve a emissão emocional do paciente em relação ao seu terapeuta, como sentimentos, desejos e impressões. Estudando o projeto do amor e Psicanálise, isso se configura como uma espécie de amor fictício.
Tal proposta se mostra verdadeira quando compreendemos a natureza desse movimento durante a sessão. A transferência ocorre por que o paciente enxerga em seu terapeuta alguém que ele conhece. Em geral, a mãe ou o pai e direciona suas impressões ao outro durante a terapia como forma de se reconectar com eles.
Esse tipo de amor é ilusório, já que não possui uma substância real quanto ao seu destinatário. Contudo, ele possui o mesmo preenchimento de um amor real, uma estrutura para se compor. O que acontece de diferente é fica na idealização, sem jamais ser concretizado, neste caso, por motivos éticos e profissionais.
Então, o que é amor?
Em alguns estudos do amor e Psicanálise, fica apontado que amar se trata de uma busca por si mesmo. O amar verdadeiramente alguém indica uma busca por verdade interna por meio da transformação. Em suma, esse amor por outra pessoa ajudaria a dar respostas sobre si mesmo naquele e nos próximos momentos da vida.
Considerações finais sobre amor e Psicanálise
O amor e Psicanálise parecem dois elementos contrários, mas se completam em algum nível. Os efeitos de um podem ser explicados, divididos e distribuídos a conversas e debates. Nesse caminho, amar algo ou alguém não é uma resposta irracional, ainda que observemos indícios de que até animais, seres irracionais, podem amar.
Apesar das explicações técnicas, a ideia do amor não precisa encaixar em algo completamente fantasioso e desacreditado. Deixe-se sentir, experimentar e aprender com ele. É uma excelente forma de alcançar seu crescimento.
Fonte:https://www.psicanaliseclinica.com/amor-e-psicanalise/
SOBRE A CAMPO AMOROSO: UM ESTUDO DO AMOR NA TEORIA FREUDIANA
On loving field: a study of love in Freudian theory
Artigos
Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro dez. 2013
Tiago Ravanello* ; Marisa de Costa Martinez**
Resumo
O artigo analisa o amor na teoria freudiana, sustentando a hipótese de que este pode ser abordado segundo o axioma lacaniano do inconsciente estruturado como uma linguagem. Assim, destacamos algumas das diferentes formas do amor, consideradas pela teoria freudiana e suas relações com os conceitos de transferência, processos econômicos, pulsão, narcisismo e sexualidade, com o intuito de apontar a estrutura do amor como campo de fenômeno, com aproximações e afastamento em relação aos citados conceitos.
Palavras-chaves: Psicanálise, amor, linguagem.
Abstract
The present paper aims at examining love in Freudian theory, by supporting the hypothesis that it can be approached according to Lacan's axiom of the unconscious structured as a language. Therefore, we put in relief some of the different forms of love as far as Freud's theory is concerned and their relations to the concepts of transference, economic processes, drive, narcissism and sexuality in order to indicate the structure of love as a phenomenon field with forthcomings and withdrawals concerning the aforementioned concepts.
Key-words: Psychoanalysis, love, language.
Introdução
Com o presente artigo, sustentamos a hipótese de que uma revisão conceitual do amor na teoria freudiana permitiria a abertura da possibilidade de aproximar os conceitos de amor, pulsão, sexualidade e desejo sob a égide da concepção de processos econômicos, bem como em sua estruturação em linguagem, uma vez que entendemos que estatuto conceitual do amor ficou em aberto. A fim de abordar tais proximidades e afastamentos entre os conceitos psicanalíticos citados, propomos um cotejo entre estes, cujo percurso passará pelo chamado amor transferencial. Posteriormente, balizaremos nossa discussão frente aos processos econômicos e, em seguida, retomaremos o conceito de amor narcísico na teoria freudiana. Nesse sentido, caberia questionar em que medida o campo amoroso englobaria os conceitos de sexualidade, amor, libido, afeto e pulsão e, ainda, como poderia ser entendida a forma de sua relação. Vale ressaltar que o nosso interesse no texto é de uma releitura da teoria freudiana por um viés lacaniano, cujo objetivo engloba o estudo do tema – o amor – em sua amplitude e complexidade, e não em suas reduções, uma vez que tal objetivo é de interesse do campo psicanalítico, já que apresenta a complexidade do tema em suas diferentes abordagens do fenômeno. Tal perspectiva se faz imprescindível à medida que uma série de artigos surge com a proposta da redução dos processos econômicos, segundo a terminologia freudiana, ao campo das considerações referentes aos modelos de pesquisa das ciências da natureza, sobretudo, das neurociências. Assim, nosso intuito é o de fazer frente a leituras biologizantes da psicanálise, tais como podem ser abordadas em Simanke (2002), Fulgêncio (2002), Gabbi Jr. (2003), Gomes (2005) e Pribam & Gill (1976), dentre outros, com a reafirmação do campo amoroso em sua estruturação de linguagem.
O tema do artigo – o amor – é tão relevante para a Psicanálise que chega a refletir não apenas sua própria complexidade, mas também a da teoria e da clínica que pretende elucidá-lo. Deste feito, o tema abarca as tramas subjetivas, epistemológicas e conceituais que estão envolvidas em toda a construção teórica empreendida tanto por Freud quanto por Lacan, para dar conta do que vem a ser o sujeito e o modo como a psicanálise oferece o amor transferencial como motor do processo analítico.
Freud muito se preocupou com o desenvolvimento da sexualidade, uma vez que "muito antes da puberdade já está completamente desenvolvida na criança a capacidade de amar" (FREUD, 1907/1996, p. 125). Tal passagem aponta para a questão de que o autor não pensava o fenômeno amoroso como restrito à vida adulta, mas sim, sua implicação na constituição da sexualidade, tal como abordaremos no decorrer do texto. Já Lacan o evidencia a seu modo, ao defender que "todo mundo demanda amor" (LACAN, 1957-1958/1999, p. 376). Deste modo, a escolha pelo campo freudiano se justifica à medida em que, dentre as possibilidades que a psicanálise oferece de abordagem do tema, Freud, segundo a leitura que pretendemos apresentar, tomou a articulação entre amor e sexualidade no cerne de suas considerações teóricas para a constituição de suas respectivas teorias.
Uma vez que a reflexão freudiana se estende a diferentes campos de olhares sob o humano – incluindo a influência da literatura –, caberia então questionarmos qual seria a relevância do fenômeno amoroso na obra freudiana. Sabemos que esta é uma preocupação do autor, tanto que no período de 1910 a 1918 escreve suas Contribuições à psicologia do amor I, II e III. No primeiro texto, Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (1910b/1996), o fenômeno amoroso começa a ser trabalhado, quando este afirma que os homens sempre procuram a mãe em suas escolhas objetais, seja com mulher comprometida, prostituta, virgens, mulheres que precisam ser salvas ou mulheres maduras. No segundo texto, Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor o autor salienta a relação entre a depreciação do amor e o fenômeno da repetição, tal como exposto na citação a seguir:
A psicanálise revelou-nos que quando um objeto original de um impulso desejoso se perde em consequência da repressão, ele se representa, frequentemente, por uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos quais, no entanto, proporciona satisfação completa. Isto pode explicar a inconstância na escolha de objetos, o 'anseio pela estimulação' que tão amiúde caracterizam o amor nos adultos (FREUD, 1912/1996, p. 194, grifos nossos).
Com o excerto acima, sugerimos que o estatuto do fenômeno amoroso ficou em aberto, uma vez que este permitiria abordar de forma semelhante os termos acima destacados, a saber, impulso, satisfação, escolha de objeto e amor. No terceiro texto, O tabu da virgindade1, Freud lembra o elevado valor atribuído à virgindade da mulher e afirma que "seja quem for o primeiro a satisfazer o desejo de amor de uma virgem [...] será o homem que a prenderá num relacionamento duradouro, possibilidade esta que jamais se oferecerá a outro homem" (FREUD, 1918/1996, p. 201, grifos nossos). Nesse momento, o autor aborda o conceito de desejo, amor e relacionamento duradouro, o que nos permite sustentar a polissemia do amor a qual pretendemos abordar no presente texto.
A partir do momento em que o autor defende a teoria da sexualidade enquanto lócus de vivência de conflitos é que se instaura um campo verdadeiramente freudiano. A implicação entre sexualidade e amor entendidos em uma concepção ampla, faz parte do alerta freudiano para a possibilidade de equívoco dos psicanalistas ao esquecer que "usamos a palavra 'sexualidade' no mesmo sentido compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben ('amar')." (FREUD, 1910a/1996, p. 234). Nesse sentido, caberia questionar em que medida o campo amoroso englobaria os conceitos de sexualidade, amor, libido, afeto e pulsão, bem como qual seria a relação entre eles.
Para destacar tal relação, retomaremos como Freud, desde o início de sua obra, apresenta a sexualidade infantil como etiologia das neuroses. Concomitantemente, o autor sugere aos médicos que tratam de pacientes nervosos "[...] que estão lidando, não com vítimas da civilização ou da hereditariedade, mas – sit venia verbo2 – com pessoas sexualmente aleijadas." (1898/1996 p. 261). O excerto apresenta que, neste momento dos primórdios da teoria freudiana, o autor já priorizava a sexualidade enquanto estruturante em detrimento dos aspetos naturais e biológicos em um texto no qual estão descritos alguns exemplos clínicos. Deste feito, entendemos que as aproximações com a clínica freudiana são, ao mesmo tempo, afastamentos de uma epistemologia de cunho biologicista.
Partimos do problema do fenômeno amoroso que, segundo a forma de estruturação do campo freudiano, permite uma polissemia do conceito nas diferentes versões e discursos culturais. Nossa hipótese é a de que, no decorrer de sua obra, Freud vai paulatinamente se aproximando das estruturas discursivas de seus pacientes, de sua clínica, diferente do que foi proposto no Projeto para uma psicologia científica (1895/1996), escrito em termos neuronais. Nossa leitura do Projeto enquanto fundamentado em matrizes próprias às ciências da natureza leva em consideração uma série de autores que apontam para intenções de pesquisa de subsumir a teoria e clínica psicanalítica ao modelo das neurociências, tais quais: Pribam & Gill (1976), Caropresso & Simanke (2006 e 2008), Fulgêncio (2002), Gabbi Jr. (2003) e Gomes (2005). Embora Lacan tenha optado por uma reconstrução do texto em termos não biológicos, por exemplo, quando aponta no decorrer do seminário 7 que, desde o Projeto, Freud já abordava as diferenças entre representação-coisa e representação- -palavra, bem como já propõe o sistema psi composto de vários traços mnêmicos, o que permitiria inclusive a formulação do inconsciente constituído de uma cadeia de significantes. Deste modo, Lacan afirma que desde o projeto freudiano, o autor introduz a ética da psicanálise, a qual estaria ligada ao princípio do prazer e que mais tarde o autor dirá que se trata de um mais além do princípio do prazer (1959-1960/2012). Nossa posição no texto é justamente apontar que há essa passagem de diferentes posicionamentos sobre o mesmo texto freudiano, apontando a amplitude do tema com diferentes possibilidades de leituras, uma vez que há argumentos que indicam o fortalecimento do viés no campo de linguagem.
A experiência do discurso analítico, enquanto método clínico, possibilitou a Freud sua construção teórica, tomando os casos clínicos como dados passíveis de interpretação, uma vez que toda clínica produz teoria e toda teoria visa produzir dispositivos clínicos. Tal intersecção, teoria e clínica, pode ser abordada desde os primórdios na psicanálise, em um texto contemporâneo ao Projeto citado acima – Estudos sobre a histeria (1893/1996) – no qual o autor implica-se a delimitar os seus conceitos à medida em que trabalha o sentido do sintoma juntamente com seus pacientes. Neste texto, Freud afirma que a histérica sofre de reminiscências, enquanto uma experiência de linguagem3 e diretamente implicada na sexualidade como estruturação de sentido, à medida em que o conceito de sexualidade aproxima-se do amor. Para tanto, voltaremos a essa possível relação, amor e sexualidade, no subitem 'amor e processos econômicos'.
A retomada lacaniana do campo da linguagem é perpassada pela clínica analítica e pelo amor: "falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico" (LACAN, 1972-1973/2008, p. 89). Nesse sentido, se não existissem os impasses do amor, não existiria a psicanálise, tamanha relevância do tema. Isso nos permite destacar que, desde o início da psicanálise, as pessoas chegavam à clínica para falar dos desencontros amorosos da vida adulta e associavam essa impossibilidade ao amor objetal infantil, demandas estas que Freud agrupou sob a égide da sexualidade.
Schiller, poeta e filósofo, foi citado por Freud a fim de destacar a importância do amor: "são a fome e o amor que movem o mundo" (1930/1996, p. 121). De forma semelhante, poderíamos pensar que o amor move, inclusive, a teoria e clínica psicanalítica, as quais não são dissociadas da sociedade e da cultura. Segundo Allouch, o discurso clínico na contemporaneidade tem apontado, com frequência, para demandas relativas ao fenômeno amoroso: "hoje, por vezes apelamos [...] para um psicanalista, quando fica evidente demais que, em se tratando de amor... a coisa não funciona." (2010, p. 11). Exemplos destes são as falas nas quais os pacientes dizem não saber quem amam verdadeiramente, porque não conseguem se relacionar com a pessoa amada, se devem ou não se implicar em um determinado relacionamento, por não entenderem o fato de amar alguém que lhes faz mal, amarem alguém e desejarem outrem, dentre outros.
O amor de transferência
A experiência clínica psicanalítica está diretamente implicada na questão do amor, uma vez que aponta para o início da teoria freudiana, a partir do amor de transferência, com o qual a psicanálise recoloca o fenômeno amoroso no seio da experiência terapêutica. A prática psicanalítica é diretamente fundamentada no amor e, por isso, aparece como condição para surgimento do tratamento psicanalítico. A relevância da transferência é destacada por Freud, quando diz que ela "[...] torna-se o agente da influência do médico e nem mais nem menos do que a mola mestra do trabalho conjunto de análise" (1924/1996, p. 47). O autor ainda discorre sobre a transferência como condição sine qua non em diversos textos4. Numa abordagem geral do conceito de transferência, entendemos que o autor sustenta uma importância dada ao amor transferencial não apenas em seus textos iniciais, mas sim ao longo de sua obra. No excerto abaixo, podemos destacar que Freud coloca as relações de amor, em seu sentido mais amplo, como o principal tema da psicanálise, uma vez que implicam em uma transferência de amor outrora vivenciada entre o indivíduo e seus entes queridos. Vejamos:
As relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com seu médico, na realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais (1921/1996, p. 81).
A partir da leitura freudiana, uma das possibilidades de conceituar a transferência seria como o amor injustificado, ao menos pela racionalidade da consciência. Entretanto, a proposta freudiana acaba por posicionar justamente a abordagem pelo seu avesso, ou seja, a transferência enquanto verdade do inconsciente uma vez que se ancora no sentimento, no afeto, no amor, em Eros e na sexualidade. Portanto, a história da psicanálise se apoia na transferência e coloca o campo do amor em primeiro plano, o que por sua vez, reconstituiria inclusive o campo da verdade5. A transferência propicia um aparente equívoco que por sua vez representa a verdade do inconsciente, assim, Freud passou a escutar lapsos, equívocos, articulações não explícitas, as quais surgem em uma fala aparentemente divergente.
O fenômeno da transferência participa do surgimento da experiência psicanalítica como ultrapassagem dos critérios de racionalidade consciente, a qual ocorre a partir dos estudos sobre a histeria e, ao mesmo tempo, colocou em questão qual a lógica da relação da psicanálise com a verdade. Freud discorre sobre a relação do amor e da verdade no fenômeno transferencial da seguinte forma: "a transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real [...]. A nova condição assumiu todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos, acessível a nossa intervenção" (1914b/1996, p. 170). É nessa região intermediária que se cria um campo próprio de investigação psicanalítica em que há uma crítica dos pressupostos de verdade e de realidade, os quais abrem uma nova perspectiva para o entendimento do fenômeno amoroso. Nesse sentido, foi justamente pela psicanálise ter assentado no amor e na sexualidade as possibilidades de constituição de lógicas individuais de produção discursiva e subjetiva, em detrimento de concepções naturalizantes ou realistas, que a teoria do inconsciente aponta para o caráter ficcional implicado em sua concepção de verdade – "as fantasias que cingem o amor quebram o limite entre a verdade e a mentira, conduzindo o homem a esbarrar em alguma coisa da ordem do intransponível" (FERREIRA, 2004, p. 8). Deste modo, tanto o amor quanto a verdade apontam para a máxima freudiana de que não somos donos de nossa própria morada, a partir da invenção6 do inconsciente.
Lacan, por sua vez, permanece na trilha freudiana de cisão do sujeito e propõe uma nova cisão, qual seja, entre saber e verdade. Nas palavras de Lacan "a análise veio nos anunciar que há um saber que não se sabe" (LACAN, 1972- 1973/2008, p. 102). Uma análise teria a finalidade de possibilitar que advenha a verdade do sujeito bem como "o que a fala comporta de amor" (LACAN, 1972-1973/2008, p. 102). Deste modo, estaria o saber de uma análise ligado ao discurso amoroso?
Nesse momento, trataremos de forma sucinta, o primeiro exemplo de um amor de transferência relatado na história da Psicanálise, qual seja, o atendimento de Anna O. por Breuer7 (in FREUD, 1893/1996). Tal paciente nomeia seu tratamento com Breuer de talking cure8, uma vez que o que se fazia era uma chimney sweeping9. Teria sido a histérica quem propiciou a criação da psicanálise, à medida em que Freud, ineditamente, pode escutá-la. Segundo Lacan, em sua releitura da obra freudiana, "Anna O., é a seu propósito que se descobriu a transferência [...]. Quanto mais Anna dava significantes e tagarelava, melhor a coisa ia" (1964/2008, p. 155). Os sintomas da paciente estavam ligados à iminência da morte durante a doença de seu pai e sua representação, quais sejam, distúrbios da visão, da linguagem e da motricidade e ainda ficou incapacitada momentaneamente de compreender e se expressar na língua materna. Em relação a este caso, Lacan ressalta justamente o caráter apavorante da transferência ao descrever que, após uma pseudociese de Anna, sentindo-se ameaçado e assustado, Breuer é levado a desistir do caso. Segundo Lacan, seria praticamente evidente que "Breuer amou sua paciente" (LACAN, 1960-1961/1992, p. 17).
Retomando o caso de Anna O., podemos pensar que por mais que uma transferência de amor como essa seja difícil de se conduzir à medida em que pode atrapalhar o tratamento, o analista não deve recuar frente à mesma. A dificuldade do tratamento analítico, conforme o ocorrido com Breuer, estaria na proximidade entre os conceitos de transferência e resistência:
Primeiro e antes de tudo, mantém-se na mente a suspeita de que tudo que interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão da resistência. Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência (FREUD, 1915a/1996, p. 180).
Tal como a demanda feita por Anna O., poderíamos considerar a transferência de amor – em seu caráter intensivo e à medida em que também pode atuar como resistência –, como um dos impedimentos à continuação de um processo de análise? Fora justamente a partir da dificuldade encontrada por Breuer no caso Anna O. que Freud propõe as regras técnicas da neutralidade e da abstinência: "já deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência" (FREUD, 1915a/1996, p. 182). Isso também implica que o analista não responda a todas as demandas dos pacientes. A ideia freudiana da abstinência e da neutralidade implicaria a não responder nem sim e nem não, mas deixar que o paciente associe frente ao silêncio do analista.
Na sequência, apresentaremos um excerto no qual Freud trabalha o fenômeno amoroso na transferência como experiência genuína. Neste, o autor utiliza a palavra genuína apresentando uma abordagem do conceito de verdade, colocando em questão seu estatuto. Assim, afirma que o amor tem como caráter essencial o fato de consistir novas adições de antigas características, isto é, repetições infantis. Seria genuíno apenas o amor objetal e, em contrapartida, o amor de transferência estaria fora do estatuto de verdade?
Por que outros sinais pode a genuinidade de um amor ser reconhecida? Por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do amor? A esse respeito, o amor transferencial não parece ficar devendo nada a ninguém; tem-se a impressão de que se poderia obter dele qualquer coisa (FREUD, 1915a/1996, p. 185).
Com o excerto freudiano acima poderíamos aproximar a experiência psicanalítica à transferência e à verdade. A discussão proposta pelo autor entre o amor e o conceito de transferência é feita, neste texto, a partir de formas aparentemente contraditórias, tanto que, primeiramente, o autor defende que o amor transferencial tem peculiaridades que o distinguem do "amor normal", objetal, no sentido de encontrar a genuinidade do amor. Posteriormente, escreve que os "[...] afastamentos da norma constituem precisamente aquilo que é essencial a respeito de estar enamorado." (FREUD, 1915a/1996, p. 186). Esta afirmativa tem o intuito de nos lembrar o quanto o amor afasta-se de uma pedagogia do afeto, bem como das regras e normas preestabelecidas. Lacan foi um autor que deu sobremaneira importância ao amor transferencial da teoria freudiana, tanto que realiza o seminário 8 a fim de trabalhar sobre o tema. Neste texto, o autor descarta a análise enquanto pedagogia amorosa:
Não estou ali, afinal de contas, para seu bem, mas para que ele ame. Isso quer dizer que devo ensiná-lo a amar? Certamente, parece difícil elidir essa necessidade – quanto ao que vem a ser amar e o que vem a ser o amor, há que dizer que as duas coisas não se confundem (LACAN, 1960-1961/1992, p. 23).
Quinet aponta, a partir da teoria lacaniana, para uma especificidade ainda referente ao amor de transferência, que se aproxima do saber e da verdade, vejamos: "o amor que caracteriza a mudança para o discurso do analista é o amor pelo saber, o amor dirigido ao saber [...]. 'Aquele a quem eu suponho saber, eu o amo'" (QUINET, 2011, p. 28). Seria o amor pelo saber inerente apenas ao amor transferencial? Lacan analisando o amor transferencial da teoria freudiana acrescenta que o amor transferencial compartilha da mesma noção que o amor-paixão:
Da mesma forma, desde sempre a questão do amor de transferência esteve ligada, de modo estreito demais, à elaboração analítica da noção de amor. Não se trata de amor enquanto Eros – presença universal de um poder de ligação entre os sujeitos, subjacente a toda realidade na qual se desloca a análise – mas de amor-paixão, tal como é concretamente vivido pelo sujeito como espécie de catástrofe psicológica (LACAN, 1954/1979, p. 133).
O excerto acima nos remete justamente ao ponto da artificialidade catastrófica da transferência que Lacan, por sua vez, questiona a escolha do mito grego retomado por Platão em O banquete, e posteriormente, por Freud, quando tais autores se referem às duas metades que passam uma vida em busca uma da outra. Lacan critica tal conceito – Eros – como excesso de imaginário idealizado, a partir de sua impactante frase: "não há relação sexual".
Roudinesco e Plon, em sua retomada das obras de Freud e de Lacan a partir do Dicionário de Psicanálise, definem a transferência enquanto "feita do mesmo estofo que o amor comum, mas é um artifício, uma vez que se refere inconscientemente a um objeto que reflete o outro" (ROUDINESCO; PLON, 1944/1998, p. 769). Assim, para os autores, a transferência é feita do mesmo estofo que amor comum e o que se transfere seria justamente o afeto, posto que no campo freudiano a economia psíquica refere-se à quantidade e intensidade. Uma ilustração da intensidade do sujeito do inconsciente que a teoria freudiana afirma, no caráter desejante, como essência e estruturação inerente às formações dos sonhos, encontram-se em A tempestade de Shakespeare, peça em que o poeta afirma: "Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono" (1623/2000, p. 94). Deste modo, entendemos que a intensidade de afeto é intrínseca ao sonho e ao amor transferencial, sendo inconscientes ambos os fenômenos. Este segundo, por sua vez, não é distinguível tão facilmente do "amor comum", uma vez que o fenômeno amoroso, de forma ampla, implica também uma repetição inconsciente. Por isso, o subitem que se segue trata do amor sob o enfoque da concepção de processo econômico, podendo ser abordado conforme sua quantidade e intensidade do rol dos afetos.
Amor e processos econômicos
Neste subitem o interesse será de, primeiro lugar, aportar essa espécie de confusão entre os termos amor e libido, como recorte inicial. Posteriormente, nos interessa retornar à metapsicologia para questionar os conceitos de economia psíquica em Freud e sua possível relação com o campo amoroso. Então, conforme sugerimos anteriormente, o estatuto do fenômeno amoroso teria ficado em aberto, uma vez que este permitiria abordar de forma semelhante alguns conceitos por ele elencados, por exemplo, amor e libido. Um exemplo disso pode ser trabalhado no seguinte excerto: "possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego" (FREUD, 1916/1996, p. 318, itálicos do autor). Nossa leitura do excerto acima sugere que, na teoria freudiana, libido não é sinônimo de amor, mas sim, ambos os termos teriam uma relação íntima, uma vez que a libido apareceria como uma espécie de aptidão para o amor. A libido seria uma das atuações do amor. Assim, poderíamos pensar que o amor seria um campo mais amplo que englobaria a libido?
Freud ter se ocupado do inconsciente e da sexualidade é conhecimento presente inclusive no senso comum. Em que medida a importância dada à sexualidade, enquanto teoria do inconsciente sexual, não seria uma importância dada também ao estudo do amor? Vejamos, a seguir, a citação do autor enquanto ilustração da polissemia do amor no texto As pulsões e seus destinos: "assim, a palavra 'amar' desloca-se cada vez mais para a esfera da pura relação de prazer entre o ego e o objeto, e finalmente se fixa a objetos sexuais no sentido mais estrito e aqueles que satisfazem as necessidades das pulsões sexuais sublimadas" (FREUD, 1915b/1996, p. 142). Nesse sentido, defendemos uma leitura do texto freudiano em que amor e pulsão se aproximam, principalmente na leitura de uma forma sublimada de amor está diretamente implicada nos destinos da pulsão, mediante uma ampla concepção de sexualidade. Em nosso ponto de vista, a busca da satisfação, tanto no amor, quanto na pulsão, tornam- -se constantes haja vista a inexistência de um objeto etologicamente inscrito que leve à satisfação plena, mas sim, abre-se ao humano a possibilidade de satisfação parcial através de objetos constituídos nos processos de sexualização. Assim, a partir dessa aproximação, Freud sustenta que a psicanálise se preocuparia justamente com as pulsões sexuais.
No mesmo texto, o autor acrescenta uma definição de amor ligada ao prazer, vejamos: "se por enquanto definimos o amar como a relação do ego com suas fontes de prazer, a situação na qual o ego ama somente a si próprio e é indiferente ao mundo externo, ilustra o primeiro dos opostos que encontramos para 'o amor'" (FREUD, 1915b/1996, p. 140). Ora, não foi justamente a necessidade de satisfação elencada anteriormente como uma das características da pulsão? Qual seria então a diferença entre os conceitos de pulsão e amor? Eles fazem parte do mesmo campo? Em seguida Freud afirma: "falamos da 'atração' exercida pelo objeto proporcionador de prazer, e dizemos que 'amamos' esse objeto" (p. 141).
Para ilustrar a questão de como Freud tratava seus conceitos, Roudinesco (2000) conta a história de um psicólogo norte-americano que propôs a Freud medir a libido dando-lhe o nome de "um freud" (p. 34), no que o autor recusa e solicita "não dê meu nome a sua unidade. Espero poder morrer, um dia, com uma libido que não tenha sido medida." (p. 35). Nesse sentido, Freud aposta na desmesura, na intensidade, nos excessos da pulsão enquanto pressão constante, diferentemente da utilização da libido enquanto medida quantitativa reconhecendo nessa forma de mensuração um obstáculo ao pensamento científico. Não seria isso uma forma de imaginarização excessiva presente em discursos científicos atuais? A conclusão que podemos tirar disso é que a teoria psicanalítica no decorrer do movimento de desnaturalização da construção amorosa enquanto necessidade instintual, bem como a própria desconstrução do conceito de instinto, permite, gradativamente, uma leitura de elementos constituídos no campo da linguagem, enquanto diretamente implicados no fenômeno, o que permitiu a constituição de uma abordagem verdadeiramente psicanalítica.
Nesse sentido, orientamos nossa leitura a partir da posição lacaniana (1953/1998) de crítica aos excessos de imaginarização dos fenômenos clínicos. Muito embora, em determinados momentos, tanto Freud quanto Lacan não tenham evitado a realização de uma leitura imaginarizada da questão do amor, nossa aposta é justamente buscar subsídios em Lacan com sua atribuição à linguagem e aos conceitos que em Freud estavam denominados de processos econômicos para não ter que reduzir o fenômeno amoroso, nem ao ponto de biologização, nem extrapolar a um excesso de imaginarização, enquanto sinais fixados, como uma espécie de etologia humana do comportamento amoroso, forjada a partir de versões estereotipadas do complexo de Édipo.
Lacan nos adverte, sobretudo em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998), a respeito dos riscos da supervalorização do imaginário na prática analítica. Segundo ele, tal ímpeto seria proveniente da "psicanálise de crianças, e do terreno favorável oferecido às tentativas e às tentações dos investigadores pela abordagem das estruturações pré-verbais." (p. 243). Em conjunto com a importância desmedida atribuída à contratransferência e às relações de objeto, a exacerbação da função do imaginário acabaria por conduzir a psicanálise a formas distorcidas de "pedagogia materna", de "ajuda samaritana" e de "mestria/dominação dialética." (p. 244). Nesse sentido, o autor propõe o retorno ao projeto epistemológico freudiano de retomada da fala como suporte da clínica e, sobretudo, do campo da linguagem como oriente da práxis psicanalítica. Para tanto, faz-se imprescindível que o discurso do analista não tenha como norte um registro em detrimento de outros, mas sim, o entrecruzamento dos registros na estruturação dos discursos. Cabe ressaltar, contudo, que nossa proposta não é elaborar um texto na teoria lacaniana, mas, diferentemente, remontar uma posição sobre o texto freudiano a partir da orientação lacaniana. Vejamos a maneira como Lacan destaca a possibilidade de, tomando a linguagem como ponto de partida, indicar o entrelaçamento dos registros do Real, Simbólico e Imaginário:
Não é porque abordamos o matema pelas vias do Simbólico que não se trata do Real. A verdade em questão na psicanálise é aquilo que, por intermédio da linguagem, quero dizer, pela função da palavra, aborda, mas numa abordagem que não é de maneira nenhuma de conhecimento, mas direi, de algo como indução, no sentido que esse termo tem na construção de um campo, indução de alguma coisa que é inteiramente real, ainda que disso não possamos falar senão como significante. Quero dizer que não tem outra existência a não ser de significante (LACAN, 1971-1972/2000, p. 34-35)10.
É, na perda da natureza, enquanto segurança na existência da coisa em si, como possibilidade humana de que o Real não cessa de não se inscrever. A teoria lacaniana, embasada na tese da arbitrariedade de Saussure (1974/2006), aponta para a inexistência de um referente, uma vez que a existência assinala para uma estrutura relacionada, ou seja, um significante encadeado a outro significante. Assim, da identificação imaginária ao semelhante, o amor passaria a uma relação simbólica de um sujeito para outro sujeito e por fim, ao nível real, se reuniria à pulsão destrutiva de morte. Deste modo, o campo amoroso estaria vinculado aos três registros, quais sejam, real, simbólico e imaginário.
Nosso desafio é o de levar em consideração tanto o amor, quanto os processos econômicos, sem perder a referência do corpo e, ao mesmo tempo, sem reduzir-se a este. No texto As pulsões e seus destinos, Freud analisa o fenômeno amoroso e sua relação com o órgão, bem como elenca as possibilidades de deslocamentos no amor:
O amor deriva da capacidade do eu de satisfazer autor-eroticamente alguns de seus impulsos pela obtenção do prazer do órgão. É originalmente narcisista, passando então para objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, e expressando os esforços motores do ego em direção a esses como fontes de prazer (FREUD, 1915b/1996, p. 143).
A partir do conceito de realidade psíquica e da teoria do inconsciente freudiana, abre-se uma perspectiva de leitura de objeto amoroso enquanto destituída de valor natural e instintual, ao contrário do que propõem, respectivamente, as neurociências e determinadas perspectivas da psicanálise11. Assim, a construção de verdade, em psicanálise, deve buscar outra forma de sustentação, sendo a linguagem uma possibilidade de ancoragem. Nesse ponto, buscamos subsídios em Lacan, sobretudo em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998), com sua crítica feita naquele momento ao excesso de imaginário nas leituras feitas dos conceitos de complexo de édipo, sentido, transferência, contratransferência, utilizados pela psicanálise pós-freudiana, mas que, ao mesmo tempo, coloca a psicanálise enquanto crítica da naturalização do amor e da verdade.
Tal procedimento de reposicionamento da questão, tal como operado por Lacan, somente é possível na medida em que a questão do amor ficou em aberto na obra freudiana, uma vez que encontramos diferentes possibilidades de abordagem do mesmo: enquanto campo, enquanto processo econômico, conforme buscamos elencar no presente texto. Por outro lado, a delimitação do campo amoroso não pode ser excessiva, pois a teoria psicanalítica priorizou o provisório e a complexidade, em detrimento de concepções fechadas, simplistas e reducionistas. Pois, fechar determinada categoria é – segundo Kojève (1947/2002) – ir de encontro à dialética hegeliana do vir-a-ser do sujeito, a qual propõe que a constituição subjetiva da verdade é sempre dialética. E sabemos que Freud, durante sua obra, reformulou sua teoria diversas vezes, como por exemplo, a primeira e segunda tópicas do aparelho psíquico, a primeira e segunda teorias da angústia. Esse procedimento de revisão conceitual chega ao extremo de, em menos de cinco anos, ter os fundamentos de sua teoria retomados em termos tão distintos como, se tomarmos os exemplos de Projeto para uma psicologia científica (1895/1996) – texto no qual Freud organiza uma abordagem do aparelho psíquico em relação a unidades neuronais e quantidades em movimento – e A interpretação dos sonhos (1900/1996) – no qual o aparelho psíquico é montado a partir de estruturas de linguagem. Vejamos:
É bem possível que esta primeira parte do nosso estudo psicológico dos sonhos nos deixe um sentimento de insatisfação. Mas podemos consolar-nos com a ideia de que fomos obrigados a construir nosso caminho nas trevas. Se não estamos inteiramente errados, outras linhas de abordagem hão de levar-nos aproximadamente a essa mesma região, e então poderá vir um tempo em que nos sintamos mais à vontade nela (FREUD, 1900/1996, p. 579).
Tal excerto nos remete à pretensão de um saber sem furos que Freud gradativamente abandonou. Vale ressaltar, que, quando o autor diz sobre a insatisfação dos estudos do sonho, não são apenas estes que estão em voga nesse volume de sua obra, mas sim, toda formulação de sua teoria do inconsciente, a qual nos apresenta sua peculiar visão de mundo e de sujeito epistêmico, do provisório e do inacabado.
De acordo com o ensino de Freud e Lacan, seja a partir do conceito do primeiro de determinismo psíquico, seja na teoria do segundo em que a verdade do sujeito fala através das formações do inconsciente – sintomas, atos falhos, sonhos e chistes – é que se abre uma possibilidade de leitura do amor enquanto campo simbólico e estruturante. Tal leitura é sustentada por Allouch ao remeter a questão de que Freud teria imaginarizado o amor e que, diferentemente, Lacan teria tentado, justamente, desencravá-lo do campo imaginário (2010). Nesse sentido, priorizamos o amor enquanto inerente ao campo da linguagem e, para tanto, buscamos subsídios tanto nos textos freudianos quanto lacanianos a fim de sustentar nossa leitura.
A partir do fenômeno amoroso, entendido em seu caráter de produção discursiva, abrimos a possibilidade para o entendimento do tema também enquanto conflito ambivalente. Tomemos o exemplo do senso comum que desconfia quando duas pessoas brigam ou "se odeiam" demais, e que poderíamos acrescentar uma leitura de Freud, quando alerta que se trata de um exemplo da verdade como negação, elucidando que o ódio é, sobretudo, conservado e suprimido no inconsciente por ação do amor. A dialética do amor pode ser entendida ainda, como as oposições presentes em As pulsões e seus destinos (1915b/1996), quais sejam: reversão a seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, repressão, e, sublimação. Com esse texto, podemos pensar no amor em termos estruturais, pois, a partir da tese freudiana da inexistência da oposição no inconsciente, o que se abriria seria justamente uma discussão a respeito das diferentes posições subjetivas passíveis de serem assumidas enquanto discurso: "A história das origens e relações do amor nos permite compreender como é que o amor com tanta frequência se manifesta como 'ambivalente', isto é, acompanhado de impulsos de ódio contra o mesmo objeto" (FREUD, 1915b/1996, p. 144). Há uma tentativa de defesa, de supressão da pulsão, entretanto, Freud continua:
As pulsões do amor são difíceis de educar; sua educação ora consegue de mais, ora de menos. O que a civilização pretende fazer deles parece inatingível, a não ser à custa de uma ponderável perda de prazer: a persistência dos impulsos que não puderam ser utilizados pode ser percebida na atividade sexual, sob a forma de não satisfação (FREUD, 1912/1996, p. 195).
Tal como visto no excerto acima, a implicação mútua entre pulsão e amor e sua impossibilidade de supressão definitiva por parte da civilização – muito embora Freud reconheça aí o objetivo inalcançável da educação – nos coloca a necessidade de abordar o tema na sequência do texto tendemos, conforme segue.
Amor e pulsão em Freud
Freud escreve sua metapsicologia (1915b/1996) na tentativa de definir o termo pulsão12 que, segundo o autor, trata-se de "um conceito básico convencional dessa espécie, que no momento ainda é algo obscuro, mas que nos é indispensável na psicologia [...]" (1915b/1996, p. 123). Seguimos a proposição freudiana em que o estudo das pulsões seria imprescindível ao estudo psicanalítico, entretanto, uma ressalva deve ser feita: nosso objetivo não é adentrar no estudo da pulsão em Freud, mas sim, buscar aproximações e afastamentos do fenômeno amoroso. O autor chamava a teoria das pulsões de sua mitologia, isto é, de um discurso que tenta fazer uma ficção do que não pode ser apreendido pela escritura científica, mas que aponta para algo que está presente e "afeta" o sujeito, sem que haja possibilidade de esclarecer aquele algo. Posteriormente, no texto, o autor conceitua o termo:
Chegamos assim à natureza essencial das pulsões, considerando em primeiro lugar suas principais características – sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu aparecimento como uma força constante – e disso deduzimos uma de suas outras características, a saber, que nenhuma ação de fuga prevalece contra eles (1915b/1996, p.125).
A leitura que sugerimos de tal excerto é que nele encontramos divergências e convergências entre a abordagem dos termos de amor e de pulsão. Poderíamos destacar duas caraterísticas em comum: que do amor não podemos fugir – o senso comum também sabe bem disso – e que ambos mantém relações íntimas com fontes de estimulação. Entretanto, seria sua característica de força constante também uma semelhança, se considerarmos a repetição como uma característica fundamental do amor, conforme apontamos anteriormente?
Uma aproximação destacada por nós entre amor e pulsão é quanto ao elemento da intensidade, o qual em sua metapsicologia freudiana é entendido como pressão ou força de uma pulsão. Freud define que "por pressão [Drang] de uma pulsão compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa" (FREUD, 1915b/1996, p. 127). Do ponto de vista que defendemos, ou essa força será buscada na linguagem, tal como Lacan nos aponta com o seu axioma do inconsciente estruturado como uma linguagem, ou ela será buscada em reducionismos biologizantes que visam subsumir a teoria e clínica freudiana às neurociências e a projetos de cunho naturalista. Um ponto que poderíamos tomar para discutir a questão seria buscar no texto freudiano Sobre a transitoriedade (1916/1996) elementos para aproximar os conceitos de pulsão e de amor, a partir de uma releitura da pressão implicada em ambos os termos. Neste texto, o autor, após passear com um amigo e com um poeta, questionou-se sobre as pessoas que não conseguem amar e nem tampouco admirar devido à transitoriedade das coisas e o luto que isso implica. Freud diz que não compreende tal fato, pois "o valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos" (FREUD, 1916/1996, p. 317). Estaria o fenômeno amoroso ligado à transitoriedade e à intensidade implicada? Em que medida a pressão e a quantidade de força destacadas no primeiro texto sobre a pulsão não estariam ligados à transitoriedade do amor-paixão? A despeito da intensidade e temporalidade da pulsão, o autor defende:
Talvez, contudo, seja admissível encarar o assunto e representá- -lo ainda de outra forma. Podemos dividir a vida de cada pulsão numa série de ondas sucessivas isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo que possa vir a durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as outras é comparável à de sucessivas erupções de lava (FREUD, 1915b/1996, p. 136).
Para o autor, a pulsão é errante, sem objeto natural, de impossível satisfação e completude: "por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa" (FREUD, 1912/1996, p. 194). Nesse ponto, se considerarmos a pulsão como integrante do campo amoroso, podemos ainda pensar que a leitura de Freud já não mais enfatiza o amor romântico, o que poderia ser alvo de crítica, mas ao contrário, o autor enfatiza o caráter fundante da incompletude humana em seu desamparo radical. Nesse sentido, Quinet aponta para uma saída pelo amor frente ao desamparo presente desde início e até fim da vida:
Assim o amor é a afirmação de ser e da vida. Nas situações mais extremas de ameaça ao ser, ou seja, de risco absoluto de deixar de ser, de existir, de not to be, o que se tem? A declaração do amor. A maioria das mensagens de celulares das pessoas nas torres gêmeas do 11 de setembro antes de se atirar pela janela era: I love you! Primeira e última palavra do ser falante (QUINET, 2011, p. 31, itálicos no original).
No entanto, o Freud nos lembra que, apesar da satisfação ser sempre parcial, a finalidade da pulsão é sempre a satisfação sendo que a única possibilidade de variação seria de serem "inibidas em sua finalidade" (FREUD, 1915b/1996, p. 128).
Nesse sentido, se o amor é aquilo que repete, e que ao mesmo tempo deve ficar na abstinência para não se esvair, como vemos em exemplos de amor platônico, amor cortês e amor transferencial, modelos estes de amores impossíveis, surge então uma questão: tendo proximidade entre o campo amoroso e a pulsão, como abordar sob o enfoque do conceito de amor, as questões ligadas ao corpo? Deste modo, "dizer que não há o objeto de desejo não significa que não haja uma infinidade de objetos que causam desejo" (FERREIRA, 2004, p. 8). Deste feito, o sujeito buscará sempre uma satisfação a qual nunca será completa.
Por outro lado, se tomamos a vertente do amor romântico e idealizado, igualmente trabalhado por Freud nos subitens a seguir, a saber, que tratam das modalidades de escolha de objeto de amor narcísico – poderíamos destacar um grande afastamento deste sentido dado ao fenômeno amoroso, com o pulsional. Ao amor, diferentemente da pulsão parcial, caberia um vínculo a um objeto que é supervalorizado, como por exemplo, quando o autor faz uso do conceito de Eros. Nas palavras de Freud: "[o amor] é originalmente narcisista, passando então para objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, e expressando os esforços motores do ego em direção a esses objetos como fontes de prazer" (FREUD, 1915/1996, p. 143). Vale ressaltar que nossa posição no artigo é justamente apontar que há diferentes passagens e diferentes posicionamentos no texto freudiano, apontando para uma amplitude do tema com diferentes possibilidades de leituras.
O amor narcísico
Para abordagem desse tema, tomaremos o texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914a/1996) como fio condutor de nossa discussão, a fim de apresentar como Freud se posicionou frente ao amor narcísico. Nesse texto, o autor associa o amor objetal aos homens, no qual ocorreria um empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso. Ao mesmo tempo, o amor narcisista relacionar-se-ia às mulheres que amam ser amadas. Deste modo, Freud aborda que a origem do ego é uma projeção do amor próprio, do investimento do eu: "um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte do seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele" (FREUD, 1914a/1996, p. 105). Diferentemente, no excerto a seguir, Freud relaciona o "amor feliz" a uma condição primitiva do homem, no mesmo sentido que o autor discorrerá sobre o amor universal. Ainda na citação abaixo, a posição freudiana a respeito do tema é de que o amor estaria ligado à nostalgia de um objeto perdido, o qual não passaria de uma cena fantasiada, mas que o sujeito buscaria repetir no decorrer de sua história.
A volta da libido objetal ao ego e sua transformação no narcisismo, representa, por assim dizer, um novo amor feliz; e, por outro lado, também é verdade que um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas (FREUD, 1914a/1996, p. 106).
No mesmo texto, o autor defende que o amor, mesmo objetal, é sempre descendente de um amor próprio, narcísico, um amor inicialmente egoico. E quando se volta para um objeto, esse amor será idealizado e dependerá do infantil de cada sujeito. Vejamos:
O estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto. Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as perversões. Exalta o objeto sexual transformando-o num ideal sexual. Visto que, com o tipo objetal (ou tipo de ligação), o estar apaixonado ocorre em virtude da realização das condições infantis para amar, podemos dizer que qualquer coisa que satisfaça essa condição é idealizada (FREUD, 1914a/1996, p. 107).
Deste modo, sustentamos uma leitura da obra freudiana em que há abordagens de diferentes tipos de amor, o qual poderia estar ligado ao tipo de escolha amorosa narcisista, trabalhado em Freud. Na citação abaixo, momento em Freud discute a formação da sociedade e a estruturação do eu a partir de fenômenos amorosos, o autor questiona-se, novamente, sobre o amor real, verdadeiro e genuíno, e que ao mesmo tempo indicaria a polissemia do amor.
Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem permanece fiel a uma certa espécie de realidade. Assim, ela dá o nome de 'amor' a numerosos tipos de relações emocionais que agrupamos, também, teoricamente como amor, por outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas se esse amor é real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de possibilidades no âmbito dos fenômenos do amor (1921/1996, p. 122).
O autor complementa que os impulsos sexuais do amor sensual, o qual tende a se extinguir quando se satisfaz, têm de estar mesclados com componentes puramente afetuosos, para que o amor possa durar e haja "laços permanentes entre as pessoas" (FREUD, 1921/1996, p. 125). Freud apresentaria, também, duas formas diferentes de aparição do amor: a primeira, a saber, o amor apareceria tanto em sua forma original, diretamente ligado a satisfação sexual. Na segunda forma, o amor fundaria a família e operaria na civilização em sua forma modificada, como afeto inibido em sua finalidade (FREUD, 1930/1996). Deste feito, de um lado haveria "as tempestuosas agitações do amor genital" ligadas à satisfação sexual. Por outro lado, um amor com sua finalidade inibida pode ser lido conforme o trecho a seguir: "[...] disposição para o amor universal e pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar" (FREUD, 1930/1996, p. 107). Na medida em que Freud propõe que a intensidade é uma medida da verdade, ao enfatizar o ardor do amor-paixão, nos deparamos com sua relação com o amor e seu caráter intensivo. Nesse momento, fazemos um paralelo entre a polissemia do fenômeno amoroso na obra freudiana, uma vez que, apontaria para o conceito de amor-paixão e suas "tempestuosas agitações", o qual se afasta da norma, e que Badiou (2011) defende como da ordem do evento, inesperado, inopinado.
Por outro lado, em oposição ao amor-paixão, Freud defende a leitura do amor enquanto laço social duradouro. No entanto, não teriam ambos os conceitos de amor um fundo pulsional comum? E qual seria a relação disso com o caráter ficcional sustentado na transferência? Assim, podemos destacar, na teoria freudiana, duas unidades de sentido relativas ao amor, a saber, uma estruturada na continuidade e na repetição, outra, nos picos da pulsão do amor-paixão. Como estes dois fenômenos poderiam ter relação com diferentes estruturas de verdade do sujeito? Vale ressaltar, que a constituição daquilo que Freud denominou realidade psíquica está diretamente implicado nas questões vinculadas aos processos econômicos, dentre eles, o amor. Nesse caso, a psicanálise coloca tanto o amor quanto a verdade em foco na construção do que poderíamos chamar de realidade, a saber, realidade psíquica, uma vez que o autor defende que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica (1900/1996).
Ainda sobre os picos do amor e sua polissemia presente na linguagem, abre-se uma possibilidade para o entendimento de diferentes tipos de amor, com um fundo pulsional comum, justamente por trabalharmos com a realidade psíquica, a saber, a do inconsciente e suas repetições.
Conclusão
Segundo o que foi exposto, não haveria um estatuto conceitual fechado a respeito do amor na teoria freudiana, restando senão a sua abordagem através das implicações com fenômenos a ele relacionados como a pulsão, a libido e a transferência, os quais apontam para consistência da leitura do conceito de amor enquanto campo – mostrando-se um fenômeno multifacetado e polissêmico – ao invés de um fenômeno restrito. Freud tomou a articulação do amor como centro e por isso, aproxima os conceitos de amor, pulsão, sexualidade e desejo sob a égide da concepção de processos econômicos, bem como em sua estruturação em linguagem, formando assim um campo amoroso. A partir das aproximações e afastamentos desses conceitos, sustentamos o caráter polissêmico presente na linguagem. As diferentes unidades de sentido do fenômeno amoroso reforçam seu caráter de discurso e de estrutura de linguagem. Portanto, o amor é mais um dos elementos da teoria psicanalítica que deve ser descolado de abordagens biologizantes de cunho realista para ser compreendido no campo da linguagem, ou seja, o amor em suas relações. Deste modo, defendemos que os campos freudiano e lacaniano não são independentes das diferentes posições e leituras e, assim, devem fazer face aos reducionismos biológicos que tem se apresentado como alternativas ao campo psi.
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Endereço para correspondência:
Tiago Ravanello
e-mail: tiagoravanello@yahoo.com.br
Marisa de Costa Martinez
e-mail: marisadecosta@gmail.com
Tramitação: Recebido em 03/03/2013
Aprovado em 21/08/2013
* Psicólogo, mestre e doutor Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro, prof. adjunto/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
** Psicóloga, mestranda em Psicologia/Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, pós- -graduada em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica/Universidade Católica Dom Bosco, analista praticante/Fórum do Campo Lacaniano-MS, psicóloga/Clínica Sinapsi, psicóloga égio Militar de Campo Grande
1 Um exemplo atual da valorização da virgindade feminina foi o recente leilão online, no qual venderam sua virgindade um homem e uma mulher, no dia 24/10/2012: ambas as virgindades foram vendidas a um homem. A segunda, uma brasileira de 20 anos de idade, vendeu sua virgindade a um japonês por cerca de um milhão e meio de reais. Concomitantemente, no mesmo leilão, um jovem russo de 23 anos teve sua maior oferta de seis mil reais, por parte de um brasileiro. Isso implica que a venda da virgindade feminina foi 250 vezes mais valorizada que a masculina (Revista Veja, de 21 de novembro de 2012)
2 Expressão latina para dizer "com perdão da palavra"
3 Tamanha era a novidade desse processo e construção do que seria a psicanálise, que Freud chegou a sugerir a sua paciente Emmy Von N que ela esquecesse todos seus traumas, para então se curar, já que padeceria de suas recordações
4 Cinco lições de psicanálise (1909/1996); A dinâmica da transferência (1912/1996); Dois verbetes de enciclopédia (1923/1996)
5 O tema Amor e Verdade corresponde ao macro da pesquisa de dissertação, da qual o artigo foi retirado. No entanto, trabalhar o conceito de verdade é o objetivo de outro artigo que está em desenvolvimento e, apresentá-lo na devida profundidade, implicaria ampliar ainda mais o foco do artigo
6 O termo invenção é utilizado em detrimento de descobrimento, para evitar a possibilidade de leitura que o segundo abre em termos realistas, ou seja, que o inconsciente existiria enquanto objeto natural independente da teoria que o engendra. Assim, priorizamos o caráter criativo e artificial do campo psicanalítico
7 "Josef Breuer desempenhou um papel considerável na vida de Sigmund Freud, entre 1882 e 1895 […] inventou o método catártico para o tratamento da histeria, redigiu com ele a obra inaugural da história da psicanálise, Estudos sobre a histeria, e foi médico de Bertha Pappenheim [...] Anna O." (ROUDINESCO, E.; PLON M, 1998, p. 93)
8 Cura pela fala
9 Limpeza de chaminé
10 A questão de abordagem do amor pelo real, apesar do interesse levantado pela questão, esgotaria o limite do artigo e, portanto, não será abordada neste texto
11 Dentre elas, destacamos a questão do inatismo kleiniano (1959/1991) e dos elementos alfa e beta bionianos (1962/1991)
12 Na edição do texto freudiano utilizada, o termo instinto está sendo empregado como tradução do alemão 'Trieb'. No entanto, utilizaremos a tradução do termo por pulsão. Priorizaremos tal tradução no decorrer de nossa pesquisa uma vez que nossa leitura é de desnaturalização da construção amorosa enquanto necessidade instintual. Deste modo, a própria desconstrução do conceito de instinto, permite, gradativamente, uma leitura dos elementos simbólicos constituintes do fenômeno, o que permitiu a constituição de um campo verdadeiramente psicológico.
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