Raquel Virgínia (Foto: Saullo Moreira / Divulgação)
"Sou uma mulher trans negra brasileira"
Vocalista d'As Baías, Raquel Virgínia escreve as dores e o orgulho da sua identidade de gênero e raça, em nova coluna para o Dia da Visibilidade Trans (29.01)
No meu caso, enquanto eu não abria as asas para minha transição, fui um homem muito afeminado. Me lembro do número de vezes em que fui submetida como homem a momentos de ridicularização.
E gritaram-me negra! Minha transição foi caótica. Primeiro que eu não sabia que estava vivendo uma transição de gênero. Hoje, a percepção que eu tenho daquele momento, é que uma enxurrada de desejos, quase que instintivos, me conduziram, e eu como uma serva obedeci e segui em frente. E o que estava à frente era o abismo. O abismo da vida que pode abrir as cortinas da beleza de ser um ser humano.
E tudo poderia ser lindo - essa metamorfose não deveria ser trágica, nem assustadora, e sim ser um renascimento. E renascer não é lindo? A lagarta que vira borboleta não é um espetáculo belíssimo da natureza?
Não para as pessoas trans. Infelizmente as pessoas trans, desde o momento em que resolvem respeitar sua natureza - sofrem todo tipo de violência. Violência psicológica, violência física, violência verbal, enfim, uma coletânea sem fim de todo tipo de sofrimento.
O que socialmente se reforça é que o nosso caminho é errado e que devemos dar meia volta e desistir. Infelizmente, muitas de nós acabam desistindo da própria vida. Os altíssimos índices de suicídio entre as pessoas trans demonstram a eficácia dessas violências que somos alvo.
E gritaram-me negra! Sei o que é ser homem negro no Brasil e sei o que é ser mulher negra no Brasil. Sou uma mulher trans negra brasileira.
Vi o foco em relação ao meu corpo mudar. Virei mulata. Virei puta. Virei gostosa.
Do momento em que me tornei uma mulher trans preta no Brasil - vi meu corpo sendo objetificado e reduzido a sexo. Foram muitas as vezes em que ao me cadastrar em hotéis ouvi “seu cliente chega depois?” - como se a única chance de eu estar num hotel de luxo, seja me prostituindo- profissão da qual não tenho preconceito, mas me parece que ao olhar do outro, essa é a única via possível da minha existência.
Virei uma mulher trans preta e automaticamente virei prostituta, automaticamente o sexo se tornou o meu emprego. Já concluíram que eu sou puta no shopping, no salão de beleza, no taxi, na praia, no prédio onde moro - e quando eu falo que sou cantora, me perguntam em qual “boate”, insinuando o “puteiro” onde eu trabalho.
Em 2019 o Mapa da Violência no Brasil apontou que 70% das pessoas trans assassinadas foram pessoas trans negras. Isso demonstra que há um recorte racial nas opressões das pessoas trans. Eu sei o quanto já fui preterida em relação a mulheres trans que não são negras. E sei que minhas histórias, infelizmente, contam muito mais casos de violências, do que outras mulheres não-negras.
Ainda assim, penso que o futuro é negro e trans. Nós somos o mais ousado da tecnologia humana. Nós reinventamos a nós mesmas e os espaços a nossa volta. O Brasil nos próximos anos vai nos ouvir muitas vezes, vai ver muitas vezes nossos projetos acontecendo, pois, nós somos o grande acontecimento dessa nova década no Brasil.
Sinto muito orgulho em ser uma mulher trans negra latino-americana brasileira. Me orgulho muito das que vieram antes de mim e abriram meus caminhos e sei que um dia serei motivo de orgulho das que vierem depois de mim e não mais contarão história de terror e sim histórias belas e potentes.
Viva o Dia da Visibilidade Trans! Viva o dia 29 de janeiro no Brasil! Muito vivas!
Fonte:https://vogue.globo.com/atualidades/noticia/2021/01/um-guia-do-que-nao-se-deve-falar-para-pessoas-trans.html
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