POR QUE É PRECISO DESCONSTRUIR O TABU EM TORNO DA INFÂNCIA,QUANDO FALAMOS DE QUESTÕES LGBTQIA+

 

 (Foto: Stefania Sangi)

(Ilustração/Colagem: Stefania Sangi)

Por que é preciso desconstruir o tabu em torno da infância, quando falamos de questões LGBTQIA+?

“Aversão ao diferente é aprendida na infância. Ninguém nasce transfóbico ou machista” – Assucena Assucena, de volta ao Vogue Gente

Um dos fatos mais marcantes da minha infância como garoto, foi quando uma professora me chamou atenção publicamente e pediu para eu sentar direito em sala de aula, “sente-se direito”; ela julgou que eu estava cruzando as pernas como uma garota: “descruze as pernas rapazinho, pois quem senta assim é menina, homens cruzam a perna de outro jeito”.

Atentos à chamada da professora, não deu outra, na hora do recreio meus colegas passaram a me chamar de mulherzinha, embora eu não entendesse o porquê do diminutivo da palavra mulher fosse rebaixado a um xingamento. Eu amava tudo o que era de “mulherzinha”, era impressionante, amava absolutamente tudo; mas sabia que teria que convencê-los do contrário. “Não, eu não era uma mulherzinha”, ao menos por fora.

Pois bem, desde aquele dia eu me policiava para que nenhuma pessoa me flagrasse em estado de “desvio”, principalmente quando o assunto era o cruzamento de minhas pernas. Parecia que a professora estava demolindo a arquitetura natural que meu corpo tomava para si. Ali, ela me ensinou a aguçar o que nossa sociedade pratica em demasia e com métodos requintados: a bendita hipocrisia.

Eu me tornei uma grande atriz-anônima-masculina até meus 19 anos, atuando no papel do menino que eu não era. Engravidei-me de mim mesma, gestando minha mulherzinha interna, até chegar a hora de pari-la.

Pois bem, eu teria sofrido menos, muito menos, ou não teria sofrido com essa questão, se minha subjetividade fosse respeitada, antes de minha genitália. O problema é que para nossa sociedade “terrivelmente cristã”, é melhor expor uma criança a uma situação vexatória, espancá-la (às vezes até a morte) em prol de assegurar os sacro valores genitais, do que abraçar a beleza do desabrochar da androginia. Digo androginia porque o desenvolvimento da identidade de gênero e da sexualidade leva tempo, vem depois.

É preciso entender que todo aspecto da cultura humana é passível de ser aprendida por qualquer ser-humano. Essa cultura pode ser aprendida por imposição ou por identidade, na maior parte pelas duas juntas. A maioria das pessoas cisgêneras se identificam com a imposição social da performance de gênero atrelada à sua genitália. Eu não me enquadrei nesse modelo e isso não deveria ser um problema. Eu me tornei uma mulher, porque me identifiquei com uma performance produzida pela cultura da humanidade. Só não tinha consciência do preço que pagaria por ser demasiadamente humana, e por transitar em estruturas, que de tão milenares, já se faziam pétreas, e sofreria por desafiá-las, pior ainda, sofreria mais por quebrá-las.

Por que razão ensinamos uma criança a desrespeitar o corpo alheio e não a compreender a natureza da diferença? A aversão ao diferente é aprendida na infância. Ninguém nasce transfóbico ou machista. Quem ensina os homens a baterem em mulheres ou a queimar travestis em praça pública, como inquisidores do santo ofício do patriarcado? Quem ensinou pais e mães a espancarem filhos visivelmente LGBTQIA+ até a morte, apenas por conta de seus trejeitos? Quem ensina crianças LGBTQIA+ a se autoenxergarem como um pecado ambulante (possuídos pelo demônio)? E o pior é que mães e pais de crianças LGBTQIA+, que decidem acolher, amar e lutar por suas crias são tratados como condescendentes da imoralidade. É CHOCANTE!

Enquanto isso a criança LGBTQIA+ tem sua infância violentada por traumas onipresentes, tendo que inventar uma vida dupla para lidar com o sofrimento de não poder ser, ou de se inventar pela negativa, dá no mesmo. Era assim que eu fazia, esperava os instantes de solidão para dar vasão à verdade. Quando meus pais saíam de casa, eu pegava os saltos altos e os vestidos de minha mãe, acoplava uma camiseta preta na cabeça (para simular um picumã longo) e desfilava pela casa me sentindo a própria Naomi Campbell. Ou me trancafiava em meu quarto depois de ter roubado, por umas horas, as bonecas que minha irmã não gostava de brincar. Eu criava uma odisseia para essas bonecas, e desse jeito eu construía um protótipo de liberdade.

É preciso lutar veementemente contra a ideia de que questões LGBTQIA+ e a infância são incompatíveis. Fui criada por um uma família de classe média normativa, na qual temáticas como essas eram um tabu. Não ter abordado tal assunto gerou mais sofrimento para minha família, principalmente para mim. Muitos LGBTQIA+ não resistem à pressão da omissão compulsória (o famigerado armário) e decidem abdicar da vida. Se formos omissos enquanto sociedade, continuaremos a compactuar com essa violência.

É importante dizer, antes que me acusem de promíscua que NÃO estou falando em estimular a sexualidade da criança quando falo da abordagem da sigla: NÃO. Estou falando de construir uma ponte, na qual o respeito à subjetividade e à diferença seja a premissa. Toda criança precisa ter sua infância respeitada. Por que seria diferente para os pequeninos que fogem de um padrão normativo de comportamento?

Eu só estava cruzando minhas pernas. Mas não esqueçamos que Alex Medeiros, de 8 anos, foi assassinado pelo seu próprio pai, que alegou ter espancado o filho, para que ele aprendesse a andar como um homem.

Fonte:https://vogue.globo.com/Vogue-Gente/noticia/2021/10/por-que-e-preciso-desconstruir-o-tabu-em-torno-da-infancia-quando-falamos-de-questoes-lgbtqia.html


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