Urias (Foto: João Arraes / Divulgação)
"Não se deve perguntar nada para uma pessoa trans que você não perguntaria para uma pessoa cis"
No Dia da Visibilidade Trans, a cantora mineira Urias censura situações desagradáveis que passa em seu dia a dia
Meu nome é Urias. Sou cantora, modelo e também sou uma pessoa trans. Por conta do Dia da Visibilidade Trans, fui convidada para falar sobre situações que mulheres como eu, passam no dia-a-dia e além de bastante desagradáveis também são dominadas por preconceitos também. Para começarmos esse papo, é preciso diferenciar identidade de gênero de sexualidade.
Identidade de gênero tem mais a ver com quem a pessoa é. Eu, por exemplo, sou uma mulher, entende? Me identifico como uma mulher. Como não me identifico com o gênero que me foi imposto ao nascer, sou uma mulher trans. Se você se identifica com o gênero que lhe foi imposto quando você nasceu, você é uma pessoa cis gênero. E eu vou usar a sigla 'cis' aqui, para facilitar a comunicação.
Sexualidade é por quem eu me atraio. Eu, por exemplo, sou uma mulher e me atraio por homens. Sou uma mulher hétero. Se eu me atraísse por outras mulheres eu seria uma mulher lésbica. É simples. Deixando mais explicado, eu queria falar de uma situação que todas nós passamos pelo menos alguma vez na vida, que é quando as pessoas insistem em saber o nosso nome morto.
'Nome morto' é o nome que é nos dado quando nascemos, pelos nossos pais. Geralmente esse nome não corresponde com nossa identidade de gênero e é alterado ao longo da vida para um nome que a gente se identifique. Quando as pessoas querem muito saber esse 'nome morto' e ficam perguntando e insistindo, de uma maneira muito incisiva, é bastante desconfortável. A insistência de usar esse 'nome morto' por pessoas cis, é de uma transfobia muito grande e é embasada em um preconceito. Você desvalidar a minha mulheridade, desvalidar minha identidade de gênero, porque você quer saber o nome que eu já tive, não faz sentido. Já sabe que eu não sou cis, então o meu nome é esse. É basicamente isso.
Agora vou falar de um tema que a galera cis adora. Genital! Sempre nos perguntam das nossas genitais, sempre nos perguntam de cirurgia nas nossas genitais, sempre nos resumem às nossas genitais. E eu já deixei nítido lá no começo do vídeo que não tem nada a ver. Você não chega numa pessoa e pergunta sobre a genital dela, você não chega numa pessoa que você acabou de conhecer e pergunta sobre alguma cirurgia que ela tenha feito na genital dela. E repare que eu disse pessoa. Não falei nem pessoa trans e nem pessoa Cis. Seguindo esse raciocínio não se deve perguntar nada para uma pessoa trans que você não perguntaria para uma pessoa cis. Basicamente isso. Nem sobre genital e nem sobre nenhum outro assunto. Se essa pessoa não fosse trans, eu perguntaria isso para ela? Então não tem porquê.
E agora vamos falar dos grandes "elogios" que são comentários embasados em preconceito e muita transfobia. Primeiramente: “mulher de verdade", "você se parece uma mulher de verdade”, “Nossa, você engana, hein”, “Nossa, se eu não soubesse..”. Isso não é elogio, galera. Eu sou uma mulher de verdade. Isso aqui não é uma fantasia que eu tiro e coloco. Não é uma fantasia de mulher. Eu sou uma mulher de verdade! Eu não passo o que eu passo quando saio pra fora de casa para você me dizer que eu não sou mulher de verdade. Eu sou de verdade, não sou de mentira não. Sou de verdade.
Segundo e não menos importante: “você é tão bonita, nem parece trans”. Esse acaba comigo. Porque assim, eu sou bonita, eu sou trans, então você relacionar, separar o trans do belo, eu botar minha cara aqui na Vogue e mostrar para vocês que sou trans, sou bonita, sou várias coisas, sabe? Precisamos ver isso aí, hein (risos).
Outro assunto que também nos tira muito do sério é quando só nos relacionam à precariedade, com a falta de beleza, coisas ruins ou também quando só nos relacionam à sexo. Eu sei que 95% da minha população de mulher trans e mulher travesti foi empurrada para prostituição e por isso eu vou deixar aqui alguns projetos que acolhem pessoas, meninas como eu, da margem da sociedade: @casa1, @casaflorescer_, @transemprego. Esses são projetos que visam tirar meninas, como eu, dessa margem da sociedade.
Bom, outra coisa bastante desconfortável é quando vocês resumem a nossa existência à nossa identidade de gênero, à trans. Sempre à trans. No meu caso por exemplo, ‘a cantora trans’ ‘a modelo trans’, ‘a trans ali’, ‘a trans aqui’. Gente, ser trans é apenas uma característica minha, é uma característica bastante pontual? Sim. Mas não é a única. Então, eu estou aqui para falar de assuntos importantes e vocês resumem minha existência apenas à minha identidade de gênero, isso é bastante pesado, não acham? (risos).
Outra coisa que me incomoda muito, mas eu não sei como é com as outras pessoas trans, então eu falo isso por mim: o momento que me perguntam quando eu me descobri mulher. Não houve esse momento. Eu sou mulher agora e a partir daqui eu fui mulher e a partir daqui eu olho para frente e me vejo mulher, serei mulher. Só que antes não me era dada a possibilidade de ser mulher e eu tive que ir atrás e lutar por essa possibilidade de ser. Creio que várias meninas trans se identificam com isso. Então não existiu esse momento, só não tive até agora a possibilidade de ser quem eu era. Não me foi nem apresentada essa possibilidade antes. É basicamente isso.
Como nosso contato agora é mais pela internet, devido ao isolamento social, sempre vejo pessoas perguntando para as pessoas trans: quais diferenças entre mulher trans e travesti? Qual diferença entre uma e a outra? Eu acho que são esquecidos pontos essenciais. As duas identidades são identidades femininas e seus nomes e pronomes devem ser respeitados. Nas suas presenças e nas suas ausências, senão, do que adianta, não é mesmo? Mas eu acho a gente tinha que partir do respeito e depois a gente diferenciava uma da outra. Vamos tentar, por nessa ordem, dessa vez?
E você ficou aí se perguntando: o que eu posso perguntar então? Sobre o que eu posso falar? Bom, eu sou cantora, eu sou modelo, você pode falar comigo de música, você pode falar comigo de moda, você pode falar comigo sobre skincare, sobre maquiagem, sobre o dia a dia, eu tenho tanta coisa para falar, mas não é só porque eu sou uma pessoa trans que eu vou poder lhe falar sobre gênero, sobre sexualidade, entende? Somos muito múltiplas, sabemos sobre tantos assuntos, não nos resumam só a isso, ok?
Fonte:https://vogue.globo.com/atualidades/noticia/2021/01/nao-se-deve-perguntar-nada-para-uma-pessoa-trans-que-voce-nao-perguntaria-para-uma-pessoa-cis.html
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