Como a pornografia distorce o sexo e incita violência contra mulheres
Especialistas explicam como o pornô distorce as relações sexuais e afetam até quem não consome esses conteúdos. Veja vídeo abaixo.
Assistir a um vídeo pornô pode até parecer um gesto inofensivo, algo só para entretenimento e prazer. Mas, não é. O consumidor desses conteúdos não só contribui com uma indústria bilionária, que lucra com a exploração do papel da mulher e até de crianças, como aprende que aquilo é sexo.
“A pornografia afeta o sexo em tudo. Quando falamos que a indústria da moda influencia a nossa roupa, todo mundo concorda. Quando falo que a indústria do sexo influencia no nosso sexo, as pessoas falam 'não'. Mas, sim. Os nossos padrões do que é legal ou não no sexo foram moldados pela indústria pornográfica”, afirma Izabella Forzani, advogada e administradora da página Recuse a Clicar, que atua na conscientização sobre os impactos da pornografia na sociedade.
"Sempre que me perguntam sobre essa possibilidade de se empoderar através da nudez eu percebo quanto o feminismo e o próprio termo empoderamento foram deslocados do seu caráter político e coletivo"
Izabella Forzani, advogada e administradora da página Recuse a Clicar
Prazer ou performance?
Quantas vezes você já reproduziu posições desconfortáveis ou usou de agressividade como inspiração no sexo só por que viu em um vídeo pornô? Agora, você já se perguntou e perguntou para sua parceira se aquela performance toda dá e proporciona prazer? Pois é, por trás dos malabarismos de posições sexuais do pornô se escondem armadilhas que só distanciam os enredos eróticos da vida real.
“O filme pornô ensina uma performance sexual que é péssima. O homem aprende a sentir prazer ao gozar com a sua própria performance. O homem transa com a performance dele. É um monólogo narcísico. E a mulher finge muito para devolver o espelho de masculinidade dele para ele se sentir bom, para ele continuar a desejando. E, normalmente, o que se ensina no filme pornô não proporciona prazer à mulher”, afirma Valeska Zanello, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.
Erotização da violência
O pornô também erotiza a ausência do consentimento feminino. “É extremamente comum vídeos que mostram a 'forçação' de barra, simulações de estupro ou com homens que pressionam até a mulher ceder. Além disso tudo, ainda tem vídeos que mostram relações com mulheres drogadas, bêbadas, dormindo e, até mesmo, mortas”, comenta Izabella Forzani, do Recuse a Clicar.
Artigo publicado no Journal on Sexual Exploitation and Violence aponta que o infinito fornecimento de novas imagens que podem ser clicadas em segundos fundiram os conceitos de sexo e violência.
"Nós mulheres não aprendemos a desejar. Aprendemos a nos tornar desejáveis. E a gente sente prazer não pelo desejo que a gente tem pelo homem. Mas, pelo desejo que estamos provocando nele. Mulheres sentem prazer ao serem desejadas"
Valeska Zanello, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília
Pesquisas sobre filmes populares da pornografia revelaram que em 88% das cenas havia agressão verbal ou física, geralmente contra a mulher. “Acho muito sintomático que hoje meninas adorem apanhar no sexo. Será que é realmente natural? Ou será que são meninas e meninos que foram criados a partir de sexo violento que temos na pornografia?”, questiona Izabella.
Padrão irreal de beleza
A pornografia reforça padrões irreais de beleza. A regra são mulheres jovens, sem pêlos, brancas, magras, genitálias rosadas e seios grandes, simetrias estéticas que o público masculino deseja. O que não se enquadra nessa lista é considerado exótico ou fetiche, como mulheres negras, gordas, asiáticas e lésbicas, por exmplo. “A pornografia não inventou, mas os reforça padrões de beleza a todo o tempo. E as pessoas que acabam saindo desse padrão têm a autoestima muito afetada. Se vende (na pornografia) que aquele tipo de corpo é o corpo atraente”, explica Izabella Forzani.
VÍDEO: especialistas explicam o que é a cultura do estupro
Advogada, socióloga e vítima de agressão sexual explicam como a sociedade compactua com a violência contra as mulheres. Brasil tem um caso de estupro a cada 8 minutos
O Brasil tem um caso de estupro a cada oito minutos. Ao contrário do que o senso comum nos leva a acreditar, a violência contra as mulheres nem sempre ocorre de forma explícita. Os abusos podem começar cedo, ainda na infância. Para tentar entender as origens dessa brutal realidade, o Estado de Minas ouviu especialistas em direito da mulher, ciências social e política, psicologia, filosofia e comunicação para mostrar como a cultura do estupro, da pornografia e da pedofilia fazem parte da nossa sociedade e estimulam, direta e indiretamente, esse ciclo de violência contra mulheres e crianças.
A série Violências foi dividida em três reportagens multimídias especiais do canal #PRAENTENDER, que traz vídeos explicativos sobre temas relevantes no Brasil e no exterior.
"A gente precisa pontuar que o estupro acontece principalmente dentro das casas das vítimas, com seus familiares"
Fernanda Ávila, advogada especialista do direito da mulher
Uma violência que vem do berço
A cultura do estupro está diretamenta ligada à socialização. À forma diferenciada como meninas e meninos são tratados desde a infância: a mulher precisa ser delicada e submissa. O homem, forte e agressivo. Uma história de berço onde machismo e violência contra a mulher crescem juntos. “As relações que conhecemos, qualquer tipo de relação social, é uma relação hierárquica de poder, onde existem pessoas que têm uma soma de capitais maior do que outros. Essas relações hierárquicas são constituídas por conta de uma socialização, seja ela masculina ou feminina”, explica a filósofa e socióloga Jéssica Miranda.O que diz a lei
Um estupro a cada 8 minutos
Para denunciar, ligue 100 em casos de violência contra crianças, adolescentes ou vulneráveis.
Para os demais casos, ligue 180.
Para urgência, disque 190.
Para os homens, a figura que representa masculinidade nas imagens também pode ser bem prejudicial. “A pornografia também traz o padrão do corpo masculino irreal. O pênis de um homem pode ser problemático para eles, como homens que não iniciam a vida sexual ativa por vergonha do pênis, que não corresponde ao que ele vê”, comenta a advogada e administradora da página Recuse a Clicar.
Outro efeito devastador da pornografia é como ela objetifica a mulher. No roteiro de um filme pornô, a mulher na maioria absoluta dos casos só existe para dar prazer ao homem. É submissa, tem seus desejos ignorados, é violentada e infantilizada. Na lógica da educação sexual às avessas, a mulher também pode aprender com a pornografia a reproduzir performances e, muitas vezes, a fingir prazer dentro desse cenário violento. E nesse jogo de encenação, a mulher incorpora o papel de ser um objeto.
“Nós mulheres não aprendemos a desejar. Aprendemos a nos tornar desejáveis. E a gente sente prazer não pelo desejo que a gente tem pelo homem. Mas, pelo desejo que estamos provocando nele. Mulheres sentem prazer ao serem desejadas”, afirma a doutora em psicologia Valeska Zanello. “Mulheres aprendem a sentir prazer em serem consideradas objeto muito desejado. A auto-objetificação é resultado desse processo”, acrescenta.
Do vício à conscientização
O primeiro contato do fisioterapeuta André Bazzo, 28 anos, com a pornografia foi ainda na infância, aos 11 anos, por meio de revistas. Aos 13 anos, quando chegou a internet banda larga em sua casa, a primeira coisa que ele fez foi pesquisar por pornografia. Começou vendo vídeos se sexo casual, mas as pesquisas por vídeos “mais leves” aumentaram a frequência até o momento em que ele se deparou com imagens que representavam - se não eram verdadeiras de fato - um sexo cada vez mais violento.
A pornografia tinha se tornado um vício e André viu sua vida sexual desmoronar. As relações com as parceiras eram sempre frustrantes por não corresponderem ao sexo representado nas telas. “Eu já não conseguia ejacular transando com outras pessoas, só me masturbando. Cheguei num ponto que, mesmo me masturbando com vídeo, eu já não conseguia mais sentir prazer e ejacular”, conta o jovem.
Mas não era só a vida sexual que andava mal. André percebeu que os efeitos nocivos da pornografia afetava também a sua saúde. “Parece que tem uma névoa que deixa sempre a gente pra baixo. Só quem passou por isso vai entender, mas é como se eu sempre estivesse a 50%, 60% da capacidade do cérebro. Nunca a 100%. Parece que tinha sempre alguma coisa me puxando para baixo”, explica Bazzo. Foram 15 anos de consumo diário de pornografia. A ficha de André só caiu sobre os problemas que vinha enfrentando tinha relação com a pornografia durante a pandemia.
Alerta para a realidade
Em março de 2020, durante uma live com colegas de um grupo de dança, ele confidenciou os problemas sexuais que vinha enfrentando. Um participante chamou a atenção dele para a questão dos efeitos do vício em pornografia. “Pensei: ‘Será?’. Aí, decidi parar de ver vídeos pornô pra testar se era aquilo mesmo’”, conta. E era. Nas primeiras semanas, ele já sentiu os resultados positivos. “Passou umas três semanas e eu comecei a notar a diferença. Tenho déficit de atenção, percebi que estava muito mais concentrado, mais disposto. Não estava tão cansado”, recorda o jovem.
A relação sexual também mudou depois de interromper o consumo de pornografia. “Não preciso mais de performar, não tenho mais tanta pressa para fazer as coisas. Posso desfrutar da situação. Eu converso mais durante o sexo. Posso desfrutar mais da companhia da pessoa”, comenta. Além disso, está mais atento ao prazer da parceira. “Hoje, presto mais atenção, converso. Eu tentava adivinhar o que a pessoa estava pensando, olhando para a cara dela. E era crítico quando a mulher não fazia algo que eu achava que era normal a ser feito”, acrescenta.
André, agora, dedica parte do seu tempo para ajudar quem que está passando pelo mesmo problema. Ele criou a página @chegadepor_nografia, no Instagram, na qual compartilha sua experiência e alerta outras pessoas sobre os riscos e efeitos nocivos da pornografia.
"Como a pornografia quase me matou como artista"
O tatuador Rafael Trabasso, de 34 anos, também foi viciado em pornografia. Embora tenha tido acesso a revistas de sexo explícito desde a adolescência, o problema só passou a impactar diretamente em sua vida aos 21 anos. Na época, morava na capital paulista, onde trabalhava e dividia apartamento com amigos. “Em 2007, a gente contratou serviço de banda larga. Eu tinha um quarto só meu, com computador e internet rápida. Foi nessa época que eu entrei nessa onda. Ao longo do tempo se tornou um hábito diário pra mim”, recorda.
O artista visual conta que passou muito tempo sem questionar o novo hábito que já vinha consumindo boa parte do seu tempo livre. Depois de oito anos nessa rotina de assistir a vídeos pornôs diariamente, Rafael se deu conta que estava diante de um grande problema.
"Em 2014, eu já estava vivendo da minha arte e me vi numa situação em que minhas contas estavam todas atrasadas. Eu não estava produzindo, não conseguia trabalhar no ritmo que eu precisava para me manter. Vivia sem energia. Estava já numa situação meio depressiva, me alimentando mal. Tudo vai ficando para trás”, relembra o tatuador. A vontade de ver pornografia só aumentava. “Passei a consumir pornografia muito mais do que estava acostumado. Era coisa de três a cinco vezes por dia que eu acessava esses sites”, conta Trabasso. Nessa época, ele entendeu que estava no fundo do poço.
“Foi num dia desses que eu resolvi pesquisar na internet se existia isso, se eu era viciado, se tinha um jeito de parar. Foi quando eu descobri esse movimento do reboot”, recorda. Reboot, ou reinicialização como mais tarde Rafael define em um texto para o site Papo de Homem, é o primeiro passo para deixar se livrar do vício da pornograria. “É um período de completa abstinência de pornografia e estímulos sexuais artificiais até que seu cérebro volte a funcionar normalmente. O tempo mínimo indicado para essa vivência é de 90 dias”, escreveu o jovem.
Reviravolta sobre o vício
Rafael Trabasso deu uma reviravolta na sua relação com a pornografia. De viciado passou a ser referência no debate sobre o tema no país. O processo de metamorfose fez com que ele pesquisasse muito sobre o tema que já vinha sendo debatido e estudado lá fora, mas que, em 2015, nada ainda se falava no Brasil. “Já existiam vários homens falando sobre o reboot, mas tudo em inglês, em sites estrangeiros”, conta.
“Eu comecei a fazer os exercícios, as técnicas de parar. E foi trabalho de uns dois anos, até eu conseguir me sentir bem”, relata. A partir dessa vivência, ele começou a escrever sobre o reboot e a compartilhar sua experiência. O primeiro texto sobre o movimento em português foi escrito por Rafael, publicado em blog pessoal e depois disseminado em diversas plataformas e veículos de comunicação. Em 2016, ele foi convidado a participar do TEDx Blumenau, em Santa Catarina. O vídeo da palestra, intitulada “Como a Pornografia quase me matou como artista”, acumula mais 500 mil visualizações no YouTube.
Questão de saúde pública
A pornografia tem se tornado um problema descontrolado, que cresce em segredo e em silêncio . A questão é tão grave que alguns estados norte-americanos já têm tratado a pornografia como questão de saúde pública. O País de Gales definiu que educação sexual será disciplina obrigatória no currículo escolar a partir de 2022. O objetivo é que crianças e adolescentes, outro público alvo da pornografia, aprendam a se manter seguros e a reconhecer relacionamentos não saudáveis.
Na visão de Rafael, que quase viu sua vida ser interrompida pelos efeitos nocivos da pornografia, o Brasil também deveria tratar o tema como uma problema de saúde pública. “Pessoas estão sendo viciadas e perdendo o controle de suas vidas, relacionamentos estão sendo destruídos. Crianças e adolescentes que ainda nem seguraram na mão e deram um beijinho, já assistiram formas extremas de pornografia. Eu acho isso devastador”.
Fonte:https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/11/20/interna_nacional,1208135/como-a-pornografia-distorce-o-sexo-e-incita-violencia-contra-mulheres.shtml
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