OS PECADOS DA CARNE: SEXO E SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA

  Os pecados da carne: sexo e sexualidade na Idade Média

Os pecados da Carne: Sexo e Sexualidade na Idade Média

Muitos aspectos da sexualidade medieval fazem parte mais do imaginário coletivo do que da história propriamente dita. O direito de pernada (“jus primae noctis”) ou direito do senhor em desvirginar uma noiva plebeia nunca foi provado. O cinto de castidade foi uma invenção do Renascimento. Havia, sim, proibições e a Igreja ditava normas sexuais para os cônjuges, porém, não existiram costumes e práticas uniformes e imutáveis por um milênio. As regras e interpretações de caráter teológico são produto da história e, como tal, mudam ao longo do tempo. Houve divergências entre as autoridades eclesiásticas sobre sexo e sexualidade e, dependendo do período e das circunstâncias, certos comportamentos sexuais eram tolerados. Ao longo dos séculos o prazer sexual foi dando lugar ao sexo para procriação, as relações sexuais foram sendo circunscritas à esfera conjugal e o matrimônio tornou-se um rito sacralizado. A ideia de pecado se alargou e reforçou o medo do castigo divino e do inferno. As autoridades eclesiásticas começaram a impor regras de conduta, de abstinência e proibições. Mas isso levou tempo e, pode-se dizer, que alcançou uma certa generalização a partir do século XI. Tamanha ingerência na vida humana certamente não impediu que as práticas sexuais, especialmente longe das autoridades, seguissem seu caminho natural, nos bosques, nos estábulos, nas tabernas e até mesmo no interior das igrejas. Em busca de fontes Para pesquisar a sexualidade medieval, os historiadores se valem de documentos de tribunais eclesiásticos e civis – quase todos produzidos por homens, em sua maioria monges ou autoridades religiosas. O tema da sexualidade praticamente não foi tratado por dirigentes laicos (nobres, cavaleiros e reis) e mulheres, com raríssimas exceções. Os registros sobre infrações sexuais devem ser lidos com cautela. Diante de juízes, como interpretar os depoimentos de homens e mulheres, solteiros e casados? Até que ponto as vítimas, as testemunhas e os denunciantes falam a verdade ou dissimulam a realidade? Outras fontes são os tratados médicos e morais, e, alguma literatura que escapou à censura, como é o caso do Decameron (1351), de Giovanni Boccaccio, na Itália, e dos Contos de Cantuária (1387-1400), de Geoffrey Chaucer, na Inglaterra. Há, ainda, as peças teatrais, as idealizações poéticas, as ilustrações, as comédias e farsas com seus inumeráveis fragmentos do real que dão pistas sobre a sexualidade medieval. A arquitetura religiosa também traz indícios sobre a sexualidade medieval. Nos capitéis, pilares e nas gárgulas das igrejas, em especial as românicas, figuras bizarras que alertavam os perigos da carne e os castigos aos infratores como a condenação eterna no fogo do inferno. Um anjo coloca seu membro sexual em um jarro. Gárgula da igreja Lonja de la Seda, Valencia, Espanha Figura de mulher tocando sua vagina, gárgula da igreja Lonja de la Seda, Valencia, Espanha. Figura de mulher tocando os seios, gárgula da igreja Lonja de la Seda, Valencia, Espanha O sexo permitido pela Igreja O único sexo lícito e não pecaminoso era o marital em que a esposa era exclusivamente receptora e reprodutora. Daí a única posição sexual permitida pela Igreja era a do missionário, isto é, o homem sobre a mulher. A mulher deve permanecer passiva, deixando toda iniciativa ao homem. Era o sexo casto para procriação. A relação sexual era um ritual de poder e identidade masculina, em que a virilidade está na força da penetração e na ejaculação. “Neste caso, o homem vai à mulher como quem vai à privada; para satisfazer uma necessidade” (ROSSIAUD, 2002: 488). Moderar a luxúria, isto é, o desejo, era a regra de todo cristão. Santo Agostinho alertava “É também adúltero, o homem que ama com demasiado ardor sua mulher”. Acreditava-se que sexo em excesso encurtava a vida, secava o corpo, reduzia o cérebro e destruía a visão. Para não errar a dose, recomendava-se: relações noturnas, sem nudez completa, duas vezes por semana (não mais que isso) e sem provocar a volúpia por gestos, palavras ou atitudes impudicas. Daí a única posição sexual permitida pela Igreja medieval era a do missionário, isto é, o homem sobre a mulher. O casal pecava se abusava das relações ou se procurava o prazer através de outras técnicas ou posições. Posições desviantes ultrajavam a ordem natural e provocavam a ira de Deus. Se um casal fosse visto em pleno ato sexual, com a mulher em cima do marido, ou praticando sexo anal ou oral (felação ou cunilíngua) podia ser condenado a vários anos de prisão, conforme o tribunal e as circunstâncias. O tratado médico-filosófico De Secretis Mulierum, escrito no final do século XIII e atribuído a Alberto Magno, alertava sobre os perigos de desobedecer a norma sexual: “Os atos sexuais reprodutivos indevidos são causa de deficiências de nascimento; a monstruosidade é causada por uma forma irregular de coito”. Práticas sexuais indevidas eram chamadas de fornicação, termo bíblico que atravessou os séculos carregando a conotação pecaminosa de ato sexual condenado por Deus. Fornicação era o sexo sem fins reprodutivos, isto é, por prazer. Períodos de abstinência sexual A Igreja exigia dos casais três longos períodos de abstinência sexual: Natal (30 a 35 dias), Quaresma e Páscoa (47 a 62 dias) e Pentecostes (50 dias). Relações sexuais eram proibidas, também, aos domingos, Dia do Senhor, às quintas-feiras e sextas-feiras consagrados para a preparação da comunhão, e nas festas de santos em particular. O casal também devia se abster de sexo durante a gravidez da mulher, na quarentena após o parto, no período de aleitamento e nos dias de regras menstruais. Os períodos de interdição ao sexo eram tantos que podiam chegar a 250 dias no ano. Adultério: crime feminino grave O adultério era crime considerado essencialmente feminino visto que o corpo da mulher pertencia ao marido. O filósofo e escritor inglês Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400) dizia que a adúltera “rouba o seu próprio corpo ao marido para entrega-o à luxúria, profanando-o, e rouba a sua alma a Cristo para entrega-la ao diabo”. O marido traído tinha autorização tácita para matar tanto a esposa adúltera como o amante. A Igreja sempre procurou contornar tais vinganças sangrentas por meio das chamadas “cartas de perdão de cornos”, através das quais se instava o casal a retomar a vida em comum. O adultério e outros crimes sexuais também eram passíveis de punição pela legislação régia podendo o rei conceder “carta de perdão” ao acusado de adultério, incesto, bigamia, alcovitagem, concubinato etc. Uma ilustração do “Decameron” (século XV) mostra um monge que, depois de jantar com o casal, manda o marido se dedicar às orações enquanto vai para a cama com sua mulher. Amásias e concubinas Mais tolerável era o “amasiamento”, isto é, a relação marital sem o casamento formal, situação comum em todos os estratos sociais, incluindo o próprio clero. Havia casos em que o casal subscrevia uma espécie de contrato de convivência diante de um notário. Talvez venha daí a “declaração ou carta de amásia”, existente no direito brasileiro, pela qual a mulher declara um relacionamento fixo com o parceiro que se encontra encarcerado e, assim, poder visitá-lo no presídio. É a chamada “união estável”, termo que tende a substituir o anterior. O termo amásia ou manceba usado para chamar a mulher que vivia maritalmente com homens sem estar casada, acabou designando, também, a amante de homem casado ou de clérigo. Nas grandes famílias, o concubinato e as aventuras passageiras acompanham o matrimônio, constituindo uma poligamia de fato. Carlos Magno, o rei franco, teve onze esposas e companheiras. Entre os pobres, contudo, a monogamia era a marca. A maior parte dos clérigos seculares vivia em concubinato, quando não eram abertamente casados. As comédias e farsas medievais ironizam a castidade dos monges, mas não ousam ironizar a virgindade das monjas. As casas de banho dos bordeis reuniam, no mesmo ambiente, prazeres do sexo e da gula. Iluminura, manuscrito de Valerio Maximo, 1400-1425 Prostituição: o mal necessário A prostituição, na qualidade de pura fornicação, era condenada pelo cristianismo, porém, tacitamente tolerada pelas autoridades eclesiásticas e civis por ser considerada um “mal necessário”. Servia para aplacar o desejo masculino, proteger as donzelas e as esposas virtuosas. Foi com essa mentalidade que, entre 1321-1325, o rei Jaime II (1267-1327), de Aragão, ordenou a construção de uma área de prazer em Valência e que veio a se tornar uma das maiores da Europa. O local reunia centenas de prostitutas jovens, bem vestidas e que não eram baratas. Havia lojas, tabernas, casas de banho e pátios onde se celebrava todo tipo de festas e prazeres eróticos. Logo surgiram outras áreas de prostituição como em Sevilha, em 1337, Murcia, em 1444 e Barcelona, em 1448. Nenhuma, porém, superou a de Valência que manteve-se aberta por três séculos, até 1651 quando se ordenou às mulheres abandonarem o lugar e 1671, ano em que a última prostituta saiu do prostíbulo. Nos bordéis, a prostituição servia para aplacar o desejo masculino. “A busca pela fonte da juventude”, afresco, c.1416-17, castelo de La Manta, Saluzzi, Piemonte, Italia Homossexualidade, masturbação e outros pecados Se na Alta Idade Média, a homossexualidade mereceu alguma tolerância, talvez pelo legado cultural do mundo romano, na Baixa Idade Média foi condenada pela religião e vilipendiada por toda a sociedade até praticamente o século XX. Santo Tomás considerava a homossexualidade uma forma de canibalismo e bestialidade. Os castigos pelo amor carnal entre homens ou entre mulheres podiam ser mutilações ou a morte na fogueira. Quando se tratava de homens, usavam-se os termos “sodomia”, “pecado contra natura” e “contra a virilidade”. Tão grave quanto a homossexualidade era o pecado da masturbação, por desperdiçar a “semente da vida”. Acreditava-se que a masturbação debilitava o indivíduo, podia levá-lo à impotência e à homossexualidade. Os castigos para os “tocamentos indevidos” não eram tão severos: trinta dias de orações e jejum era o mais habitual. Eram também faltas morais graves: toda ação anticoncepcional, porções afrodisíacas, abortivas ou para curar a impotência. Além de pecado contra a natureza, essas ações podiam ser associadas a feitiçaria o que aumentava a punição do(a) acusado(a). A maior repressão sexual veio depois Apesar da Idade Média ter ganhado a fama de período de repressão sexual, a severidade moral da Igreja e das autoridades civis foi mais dura, intolerante e punitiva a partir do final do século XV, em pleno Renascimento. Os dogmas mais rígidos foram estabelecidos no Concílio de Trento (1545-1563) que reafirmou o catolicismo mais intransigente. A centralização política e a dinamização das rotas comerciais permitiram que as leis, a vigilância religiosa e as punições chegassem a toda parte. No mundo católico, a repressão radicalizou-se com a criação da Inquisição, que teve seu equivalente (igual ou pior) no meio protestante, com a obediência férrea às Sagradas Escrituras. Ganhava forma, assim, o contexto moral que reprimiu, sem concessões, a sexualidade durante centenas de anos, chegando praticamente até o final do século XX. No século XVI, a homossexualidade de índios na América Central escandalizou o espanhol Vasco Nuñez Balboa que mandou seus cães atacarem os nativos. A repressão sexual de raiz medieval avançou os séculos. 

Gravura de Theodor de Bry. 

Fonte  KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A mulher e a família in: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. LE GOFF, Jaques & TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, Sp: Edusc; São Paulo, Sp: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. II, 2002. ROSSIAUD, Jacques. Sexualités au Moyen Age. Paris: éd. Jean-Paul Gisserot, 2013. ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. VERDON, Jean. Os bordéis, casas das mais toleradas. In: Revista História Viva. São Paulo: Duetto. ano 1, n. 5, mar/2004, p. 44-45. ALVES, Gracilda. Amor carnal e amor pecaminoso. Cartas de Perdão na chancelaria de D. João II. LÓPEZ, Noelia Rangel. Moras, jóvenes y prostitutas: acerca de la prostitución valenciana a finales de la Edad Media.  Miscelánea Medieval Murciana, XXXII, 2008.

Fonte: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/pecados-da-carne-sexo-sexualidade-idade-media/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues

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