"O PODER DO HOMEM ESTÁ LIGADO A SUA CAPACIDADE DE SILENCIAR AS MULHERES" - ENTREVISTA COM A ACADÊMICA INGLESA MARY BEARD
A acadêmica inglesa Mary Beard, retratada em Madri. CARLOS ROSILLO
“O poder do homem está ligado a sua capacidade de silenciar as mulheres”
A acadêmica Mary Beard lança ‘Mulheres e poder’ e entra em um dos debates mais quentes atuais
Cambridge
Mary Beard, de 63 anos, é a intelectual do momento no Reino Unido. Grande especialista em Roma clássica, seu vasto conhecimento sobre o mundo antigo e seu proverbial talento divulgador, presentes em obras como SPQR, permitem a Beard contextualizar e focar certeiramente os debates contemporâneos. Prova disso é Women&Power (Mulheres e Poder), um pequeno manifesto feminista.
Pergunta. O primeiro exemplo documentado de um homem mandando uma mulher se calar está na Odisseia. Silenciar Penélope, sua mãe, faz parte do desenvolvimento de Telêmaco, filho de Ulisses, como homem?
Resposta. Precisamos compreender que são problemas profundamente arraigados na história da cultura ocidental há milênios. Com isso não quero dizer que estejamos amarrados a eles, mas devemos buscar soluções diferentes. Quando você vê exemplos de mulheres silenciadas no mundo antigo, é fácil concluir que faz parte de uma discriminação geral. Mas a Odisseia mostra mais do que isso. Para deixar de ser menino e tornar-se homem, Telêmaco deve aprender a calar as mulheres. É um silenciamento muito mais ativo. O poder do homem está associado a sua capacidade de silenciar as mulheres. Toda a definição de masculinidade dependia do silenciamento ativo da mulher.
P. Se as mulheres não são atraídas para as estruturas de poder, por que a inércia histórica é mudar as mulheres e não essas estruturas?
R. Pensamos nas estruturas de poder como masculinas e fazemos com que as mulheres se encaixem, que mudem seu comportamento ao ter acesso ao poder. Acabam agindo, interpretando um roteiro. Mas não é preciso mudar as mulheres, mas as estruturas. É preciso pensar que é o poder, o modo de falarmos sobre ele, a forma como está ligado à fama, a imagem e a linguagem associadas ao poder. Veremos que é uma versão extremamente masculina. Poder é algo que você tem e eu não. Queremos grandes líderes. Pois sim. O que queremos são grandes contribuidores. Um líder grande e macho com uma pirâmide abaixo dele é uma das maneiras possíveis, mas não a única.
P. Passaram-se cem anos desde que as primeiras mulheres conseguiram em seu país o direito a votar e ser eleitas deputadas. Mas ainda hoje o papel das mulheres nos parlamentos continua sendo o de discutir e produzir legislação sobre assuntos relacionados aos interesses tradicionalmente associados às mulheres.
R. E tudo bem. Alguém precisa defender as mulheres. Mas elas continuam sendo deixadas de fora das estruturas masculinas de poder. Continuam sendo segregadas à seção de interesses femininos. Se eu fosse uma mulher no Parlamento também gostaria de defender as mulheres. Mas continua havendo uma diferença. As pessoas ouvem mais as mulheres quando falam de assuntos de mulheres do que quando falam de economia.
P. Qual a sua opinião sobre a campanha do #MeToo?
R. Está sendo muito importante. As redes sociais são muito boas para começar as coisas, o problema é que uma hashtag não muda nada. Se você quer solucionar o problema, precisa mudar o equilíbrio de poder.
P. A sra. destacou a diferença entre comportamento inapropriado ocasional e sistemático. Não defende a tolerância zero?
R. Não acredito na cultura da tolerância zero porque todos fazemos coisas idiotas. Não quero um mundo em que ninguém seja mal-educado! Mas também não quero um mundo em que as pessoas sejam sistematicamente inadequadas. Eu, em muitas ocasiões, fiz coisas inapropriadas. Não creio que deva ser apedrejada por isso.
P. Vai continuar assistindo os filmes de Woody Allen?
R. Assisti e gostei muito de filmes de Woody Allen desde que tenho memória. Há muitos aspectos nele que deploro. Mas vou para o túmulo pensando que Noivo neurótico, noiva nervosa é divertido. O que fazer? É difícil saber. Isso é inaceitável, mas o cara também faz bons filmes. Temos de ser muito mais sofisticados, e não pensar que as pessoas são só boas ou más. É preciso encontrar a forma de lidar com alguém que é brilhante e horrível.
P. Os extremos monopolizam certos debates nas redes sociais. Os mais moderados têm a responsabilidade de intervir?
R. As redes sociais não mudaram a forma como as pessoas falam ou pensam. Quando eu era estudante, dizíamos coisas horríveis de nossos professores, mas dizíamos no bar. O Twitter amplifica isso, e isso também é bom. O importante é que não é necessário você dizer que minha vagina cheira a repolho para dizer que não concordamos um com o outro. Que horrível seria um mundo em que todos concordassem!
P. Sua atitude a tornou referência para muitas mulheres que querem ser valorizadas por suas ideias e não por sua aparência.
R. É importante mostrar às pessoas que você pode ser mais velha e estar bem com isso. É claro que me incomodam certas coisas maldosas que dizem sobre mim, se não seria uma psicopata, mas não me afetam demais. E creio que é importante, especialmente para as garotas jovens, ver uma mulher mais velha que está por aí, que fala palavrão, que diz o que quer e não se amedronta com o que lhe dizem na rua.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/09/cultura/1518195599_638386.html
Comentários
Postar um comentário