Mulheres se manifestam em apoio ao movimento #metoo em Estocolmo, Suécia, no dia 14 de janeiro.JONAS EKSTROMER AFP
Da queima do sutiã ao Time's Up: os desafios da mudança geracional no feminismo
Ao invés de desaprovar táticas, seria mais produtivo aproveitar o debate para discutir os bloqueios que impedem o avanço de pautas históricas em nível institucional
Pela sua visibilidade global, os eventos de premiação cultural vêm se tornando palco de contestação das desigualdades de raça e gênero no mundo do entretenimento, especialmente do cinema e da televisão. Foram protestos contra a desigualdade salarial de mulheres em Hollywood, no Oscar 2015; contra a seletividade racial na composição de elencos de atores e das próprias listas de indicação a prêmios, no Oscar 2016; e contra os casos de assédio sexual, supostamente protagonizados por produtores e atores deram a tônica do Globo de Ouro, no último 7 de janeiro. A onda de acusações públicas de assédio sexual em Hollywood, em curso desde o ano passado, culminou durante o evento no protesto de mulheres vestidas de preto e no discurso antimachismo de Oprah Winfrey.
O Globo de Ouro bateu o recorde de repercussão pública. Como uma espécie de Arca de Noé, provocou o dilúvio entre mulheres. Mas parece ter resultado em trégua. Foram menos de 7 dias entre a publicação da carta aberta no Le Monde, assinada por 100 mulheres francesas (última terça-feira), e o pedido de desculpas da sua mais glamourosa signatária, a atriz Catherine Deneuve, em artigo individual publicado no Libération, no último domingo. A carta coletiva foi reação negativa à onda de acusações públicas de assédio sexual dentro e fora das redes sociais, que foi associada a um (suposto) novo "puritanismo", feminino e/ou feminista. A manifestação, ainda, fez apelo ao direito de homens de exercerem o jogo social da sedução na expressão infeliz do “direito de importunar” mulheres. O pedido de desculpas de Deneuve se seguiu à reação viral de ativistas feministas contra a manifestação coletiva no Le Monde que, segundo elas, seria expressão pública de naturalização, banalização e estímulo às relações de violência sexual entre homens e mulheres.
É no mínimo apressado atribuir o conflito de interpretações sobre os limites entre a liberdade sexual da sedução e o constrangimento sexual do assédio à reedição da conhecida disputa de ideários culturais entre franceses (os libertários seculares) e norte-americanos (os puritanos do politicamente correto). Nos últimos quase três anos, campanhas on line contra assédio sexual vêm circulando velozmente por vários países. No Brasil, a chamada “primavera feminista” de 2015 uniu protestos de rua contra retrocessos vindos do Congresso com campanhas online de denúncia de assédio como #meuamigosecreto e #PrimeiroAssédio. Em abril de 2017, a campanha local “Mexeu com uma, mexeu com todas” foi liderada por atrizes contra episódio envolvendo o ator José Mayer e uma figurinista, ambos da Rede Globo. A campanha #MeToo ("Eu também") foi lançada, em outubro de 2017, na esteira das primeiras denúncias contra o produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, para estimular anônimas e atrizes a testemunharem experiências de assédio sexual. A edição da campanha #MeToo na França #Balancetonporc ("Denuncie seu porco") encoraja mulheres não apenas a compartilhar histórias, prestar testemunho, como também a revelar o nome de agressores poderosos.
Há muito ruído no debate a começar pelo desentendimento básico sobre quais limites exatamente estamos falando: se os da liberdade dos homens de seduzir, ou se os da liberdade de mulheres de denunciarem. O excesso da primeira pode se converter em abuso e o da segunda em linchamento na praça pública da mídia e das redes sociais. A aprovação ou desaprovação de pautas e estratégias de mobilização fazem parte do jogo político amplo e difuso desencadeado pelo protesto público. Uma evidência disso é a avalanche de manifestações na mídia convencional e redes sociais pró e contra francesas e feministas, envolvendo ativistas, apoiadores, espectadores e antagonistas.
Nosso propósito não é engrosssar o coro de contentes ou de descontentes com as formas e os tons das mobilizações, mas de refletir sobre o significado histórico da recente polêmica pública. O que está em jogo são novos desdobramentos do movimento social. O movimento feminista contemporâneo, iniciado com os protestos dos anos 1960, trouxe duas amplas pautas para a arena pública: a da igualdade social de oportunidades no mercado de trabalho e a da afirmação da liberdade e da autonomia de mulheres sobre seu corpo e sexualidade. Desde então, o impacto público das reivindicações foi distinto. No caso da primeira, geralmente vocalizada por meios convencionais de ação política (passeatas, comícios, ações judiciais), não houve praticamente quem tenha defendido publicamente que mulheres, com as mesmas credenciais de homens, não deveriam receber salários ou postos condizentes com tais credenciais. Afinal, reinvindicações pela igualdade social de oportunidades no mercado de trabalho coadunam com ideários socioculturais assentados seja o da sociedade capitalista (a lógica do mérito), ou o do sistema político democrático (igualdade civil perante a lei).
Já a segunda pauta foi desde sempre a mais desafiadora e se desdobrou em diferentes reivindicações públicas, ao longo do tempo: da liberdade sexual e contra o uso comercial do corpo feminino, nos anos 1960, àquelas associadas à violência contra fronteiras físicas e simbólicas do corpo feminino, nas décadas seguintes: estupro, violência doméstica, feminicídio, aborto, assédio sexual. De lá para cá, formas mais radicais de protesto sempre foram alvo de desaprovação pública. Uma das manifestações mais icônicas foi a de autoria das ativistas do Womens´s Liberation Movement contra o concurso "Miss America", em 1968, na qual queimaram simbolicamente objetos-fetiche da beleza feminina (sutiãs, sapatos de salto alto, cílios postiços, sprays de laquê, maquiagens, revistas femininas, espartilhos, cintas). Nessa época, mulheres também foram acusadas de serem radicais na rejeição ao que seria um dever ser natural da atitude feminina diante do apetite sedutor masculino. E, por um bom tempo, como sabemos, o estereótipo da feminista foi o da mulher feia e mal amada ou, em versão tupiniquim, daquela que “não tinha um homem para chamar de seu”.
Os conteúdos e formas de protesto são contextuais e relacionais, isto é, são modelados pelas condições políticas, culturais, organizacionais da ação coletiva. Essas, por sua vez, desenham as fronteiras entre gerações de ativistas, bem como daqueles que os apoiam ou se antagonizam. A disputa política e cultural em torno da delimitação dos limites entre sedução e assédio sexual tem, nos parece, um forte ingrediente geracional. Feministas da geração de Deneuve desafiaram as regras de ingresso e as desigualdades de mulheres no mercado de trabalho, assim como padrões morais relativos à condição feminina: vida sexual, papel familiar, maternidade, aborto, etc. Para isso, criaram grandes organizações não governamentais, adentraram o Estado e as instituições globais para influenciar a produção de normas internacionais e políticas públicas nacionais. E conseguiram. Mas certamente foram seletivas. Não esgotaram a amplitude da pauta e nem as formas historicamente disponíveis de protestar.
A questão da violência sexual tornou-se a principal pauta de uma nova geração feminista que vem mudando as formas de fazer reivindicação política no espaço público, desde os anos 2000. Primeiro, trata-se de mobilizações sem lideranças, que se disseminam tanto nas redes sociais quanto em grandes marchas nacionais. Por exemplo: Marcha Mundial das Mulheres, Marcha das Margaridas, Marcha das Vadias. Segundo, a enorme carga emocional contida nos temas do estupro e do assédio sexual se expressa em modalidades de performance pública confrontacional, que em circulação transnacional, visam gerar choque moral para retirar da sombra situações de opressão naturalizadas.
Uma dessas performances é o deboche. Na Marcha das Vadias, movimento global deflagrado em 2011 em Toronto, no Canadá, as demonstrações de rua são contra o estupro, em particular contra a crença de que mulheres seriam responsáveis por ele devido a sua conduta. Nelas, ícones e estereótipos da sensualidade feminina, ao invés de serem simbolicamente queimados, como fez a geração anterior, são transformados em símbolo de contestação: parte das manifestantes se veste de roupas consideradas provocantes (blusinhas transparentes, lingerie, saias, salto alto, apenas o sutiã) ou deixam os seios nus.
A outra performance, que estamos observando se difundir nessa recentíssima onda de protesto contra assédio sexual, é a da mobilização da vergonha ou do embaraço (mobilization of shame). Trata-se da estratégia de exposição pública de figuras poderosas ou autoridades políticas visando, por meio de constrangimento social, produzir mudanças em condutas rotineiras consideradas indesejadas ou injustas. Não se trata, contudo, de uma estratégia nova. O movimento de direitos humanos, há dois séculos, difundiu a estratégia de expor Estados na comunidade internacional como meio de conter violações de direitos. Essa performance foi adotada nas mobilizações pro política de controle da violência contra a mulher, como a campanha da Lei Maria da Penha, que gerou a responsabilização do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por omissão e negligência. Sua recente utilização na questão do assédio tem passado longe das cortes e vem gerando polêmica na mesma medida em que gera embaraço.
Se, como dissemos, as opções por formas de manifestação mais radicais podem gerar muita desaprovação pública, as críticas sobre a falta de devido processo e ampla defesa nas acusações de assédio não podem ser discutidas sem levar em conta a performance ruim de sistemas de Justiça. No caso brasileiro, por exemplo, processos de estupro que são conduzidos de modo a questionar o comportamento da vítima, casos de feminicídio em que se revigora a legítima defesa da honra, vítimas que na dificuldade de obter provas acabam sendo acusadas de calúnia e, ainda, ataques sexuais a mulheres no transporte público que são classificados como simples importunação ao pudor. Ao invés de seguir o caminho dos tribunais, as acusações de abuso sexual vêm transformando redes sociais, imprensa e eventos culturais em espaço de protesto.
A variável geracional é uma pista para uma análise menos polarizada da disputa pública entre versões do problema da violência sexual. A luta de cada geração é condicionada pelas oportunidades e restrições à vocalização de demandas nos espaço público, às tecnologias disponíveis para a conexão entre ativistas e à seleção dos aliados e adversários disponíveis. Se a geração anterior apostou na reforma legal, a nova geração, embora não abra mão da linguagem dos direitos, percebeu que os caminhos de mudança via judiciário são tortuosos. Uma hipótese é a de que as formas disruptivas de mobilização contra o assédio sexual, no espaço público, têm como pano de fundo a frustração com estratégias políticas voltadas ao Estado, que foram a tônica da militância da geração anterior. Ao invés da simples desaprovação das táticas de mulheres e feministas, seria mais produtivo aproveitar o debate para discutir os bloqueios em campos mais institucionalizados que têm impedido o avanço de pautas históricas.
Mas há mais mudanças a caminho no campo do ativismo. O Globo de Ouro 2018não foi apenas palco do protesto simbólico de mulheres de preto. Foi também plataforma de projeção da mais nova campanha pública norte-americana contra assédio sexual, lançada em 1º de janeiro de 2018, o Time's Up (em tradução livre: Basta!). O movimento conta com a experiente National Women’s Law Center, fundada em 1972. A organização encabeça o Time's Up Legal Defense Fund, reunindo dinheiro e advogados para levar os casos de assédio sexual à Justiça dos tribunais, principalmente para mulheres sem recursos para isso (https://www.timesupnow.com/). A campanha promete combinar as pautas históricas da igualdade de oportunidade no mercado de trabalho e da violência sexual. É aguardar para ver se e como o movimento Time's Up representará um novo espaço de aglutinação de celebridades e de mulheres comuns, bem como de diferentes gerações de ativistas feministas.
Débora Alves Maciel é professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UNIFESP e pesquisadora do CEBRAP.
Marta Rodriguez de A. Machado é professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e pesquisadora do CEBRAP.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/19/opinion/1516390183_108057.html
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