Fonte: http://zexcentricidades.blogspot.com.br/
A Ferida e a Cura do Homem Moderno
Num jogo pernicioso e inconsciente de poder, o homem também acaba sendo presa (em alguns pontos a maior delas...) da sociedade machista e patriarcal criada por ele mesmo e por seus pares. Paradoxalmente algoz e vítima, ele perpetua esse ciclo nefasto através de dois vetores de ação: a propagação de uma norma de conduta do que é ser um homem, e a supressão das suas emoções.Qual é o medo mais visceral que assombra os homens? Segundo uma pesquisa patrocinada pela Sociedade Brasileira de Urologia, o grande fantasma masculino é a impotência, mais do que a traição da mulher ou a perda do emprego. Ela põe em cheque sua capacidade realizadora, mexe com sua autoestima, com a autoconfiança, com a potência em seu aspecto mais amplo, com o levantar do pinto psíquico mesmo. Muito antes de qualquer problema de ereção peniana, e mesmo que este nunca ocorra, o homem moderno carrega dentro de si outro problema muito mais profundo, uma grande chaga, sofrendo suas consequências sem se dar conta disso: a perda da conexão com a verdadeira vida interna. Essa ferida atravessa gerações, é impingida em cada homem por outros homens, e acaba se tornando a base da sociedade machista em que vivemos.
Isso se dá de uma forma totalmente inconsciente e num ciclo de retroalimentação nefasto, tendo duas hastes impulsionadoras: a imposição de um script rígido do que é ser homem, e a supressão das suas emoções. Nossa sociedade patriarcal, conservadora, utilitarista e monetária exige de seus membros força, coragem, sucesso, poder, dinheiro, e qualquer coisa que não se coaduna com esse padrão deve ser exorcizada. No entanto, os homens não estão imunes às vicissitudes humanas, marcadamente as emocionais: riem, choram, sentem prazer ou asco, querem ser felizes, conquistar um lugar ao sol, sentirem-se amados e integrados na coletividade, têm seus fracassos ao longo da vida... Isso é ser humano.
Mas o universo masculino não admite o reconhecimento de fragilidades ou emoções, pois, equivocadamente, acredita-se que isso acarretará em perda de potencia, de poder e inferiorização perante os outros homens. E, sem perceberem, fogem desse estigma como o diabo foge da cruz, pagando um tributo altíssimo: a mutilação de parte de suas almas. Ou seja, acabam fazendo o papel de Procustos modernos. E como se dá essa mutilação? Todas as características humanas que não se coadunam com o padrão machão-bem-sucedido-duro-na-queda-fodão, mesmo que existam, são varridas para debaixo do tapete, ou melhor, para os mais profundos recônditos da alma. E tudo que é reprimido vira neurose e infelicidade.
Ao longo dos séculos de desenvolvimento da sociedade ocidental, marcadamente com o advento do capitalismo, impôs-se ao homem moderno um script de como atuar na vida. Casar-se, constituir família e ser seu provedor, engolir suas dores e emoções, ganhar dinheiro e ser bem sucedido, corajoso, macho... Tudo isso pode ser sintetizado como a "tirania do velho paradigma", e resumido pelo escritor John H. Lee em seu livro "At my father's wedding": "Não sinta. Morra mais jovem do que as mulheres. Não fale. Não sofra. Não se zangue. Não entorne o caldo. Não confie nos outros homens. Não ponha a paixão adiante da responsabilidade. Siga os outros, e não a sua vontade".
O não cumprimento desse script pode representar um banimento do universo masculino, na forma de rejeição e segregação tácitos. E aí surge o medo: medo de perderem a potência; de não serem bem sucedidos, fortes, dominadores; medo de perderem espaço para outros homens, seja numa traição amorosa, no emprego, no confronto físico com um bandido ou outro rival, ou dentro da sua própria família (quando um outro homem, seu filho, acaba assumindo responsabilidades e direito a voz e voto nos conclaves familiares). Enfim, medo de encarar e assumir as suas fragilidades e, consequentemente, sofrer a apartheid da "Macholândia". Esses medos têm estreita ligação com o jogo do complexo de poder, tão inerente ao universo masculino. Quem sabe um resquício (ou sintoma?) desse jogo seja o hábito de muitos homens, quando lado a lado em mictórios, olharem para o pinto do outro, numa espécie de comparação de tamanho com o seu, fazendo uma associação inconsciente entre comprimento, potência e poder?
A saída encontrada foi a repressão, o silêncio e a negação dos sentimentos. E o homem ficou relegado à própria sorte, sofrendo uma ferida em sua alma, transmitida de geração em geração. Seu script social precisa ser seguido, em detrimento de qualquer espécie de sonho e desejo - sem ter a liberdade de poder ser ele próprio. Nem chorar e expressar a raiva por isso lhe é permitido, aumentando a ferida interna. Essa pressão interior muitas vezes explode, e a vida dos homens torna-se violenta. Porque sua alma foi violada! A explosão se dá em atos de assassinatos, estupros, abusos sexuais de crianças, alcoolismo, indiferença, distanciamento silencioso, falta de carinho... E as vítimas, geralmente, são as mulheres e os filhos, impingindo nas gerações seguintes a mesma mácula que ele traz em si, e da qual gostaria de se livrar.
Fonte: http://www.blogdacomunicacao.com.br/qual-o-nivel-de-machismo-no-brasil/
No fundo o homem oprime aquilo que teme. Suas emoções, sem uma via satisfatória de expressão, acabam escapando por frestas e buracos formados pela pressão interna: são projetadas em mulheres e, muitas vezes, em homossexuais. Por isso a cultura patriarcal está assentada na opressão através do machismo e da homofobia. Na melhor das hipóteses, transforma parceiras em mães - ora exigindo "amamentação" (a mulher prove sua alimentação, a ordem do lar, das roupas, da limpeza, do jornal, da cerveja), ora dominando-as e exercendo seu complexo de poder. Seu medo os separa da própria alma (o principio do relacionamento, do sentimento) podendo até amortecer sua força vital e a consciência do próprio corpo (não são os homens que mais relutam em ir ao médico?). E, mesmo com essas explosões, sua essência permanece soterrada nos escombros emocionais.
E o que fazer com tudo isso? Só nos resta aprender as lições, integrá-las e fazer o possível para transformá-las em sabedoria e tornar nossa vida mais prazerosa, com sentido e propósito. E como fazer isso? A vida não é uma receita de bolo, nem vem com manual de instruções. Cada ser humano deve procurar suas próprias respostas e caminhos nesse sentido, que são altamente customizados para cada um. Alguns toques podem servir como balizadores neste caminhar. Precisamos pensar criativamente em vias que conciliem as necessidades materiais e profissionais do homem moderno com os seus anseios mais profundos e com a responsabilidade para com outros seres humanos.
Detalhe da "Guernica" de Pablo Picasso - Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia - Espanha
O primeiro passo é começar o trabalho em si mesmo, reconhecendo as feridas que carregam e ter a coragem de lidar com elas. Elas não te fazem mais ou menos homem; são partes integrantes do processo. Isso é essencial para a purificação e rompimento deste ciclo. E também é crucial colocar-se no lugar de seu pai, tentar entender suas dores, limitações, o que ele teve que viver. Quando, de forma adulta, entendemos nossos genitores, iniciamos o processo de sermos nossos próprios pais. Caso contrário, se apenas alimentarmos mágoas e ódio, permaneceremos ligados ao que nos feriu. E repetiremos com nossos filhos o mesmo padrão, perpetrando a "maldição", como foi expressa na canção "Pais e filhos" da Legião Urbana: “Você me diz que seus pais não te entendem / Mas você não entende seus pais / Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo / São crianças como você / O que você vai ser / Quando você crescer”.
Trocar experiências, confidências e lágrimas com outros homens - melhor ainda com um terapeuta - pode ser libertador, e pode provocar um efeito dominó em outros homens, passando a se sentirem à vontade para, também, partilharem as dores de suas almas. Usando uma terminologia corporativa, expandir os ramos de atuação da “Confraria Masculina de Proteção Mútua” para casos além dos amorosos e sexuais. Neste ponto temos muito que aprender com as mulheres! Enquanto elas choram e falam sobre suas mágoas, os homens ruminam sozinhos. Fazendo isso os homens estão procurando mentores e também atuando como mentores a outros.
Isso funciona como um gesto de amor entre homens. Calma, isso não é papo de “boiola”! Amor no sentido grego de "philia", ou amizade. O amor ou amizade fraternos que dão suporte uns aos outros, e de saber que todos estão no mesmo barco, todos tem suas feridas internas, sofrem, buscam ser felizes e se realizarem no mundo. Devido ao competitivo jogo patriarcal de poder e o medo de entrar em contato com suas emoções – e descobrir-se vulnerável e frágil – o homem acaba tendo medo de outros homens. Uma das poucas exceções que vemos nesse quesito é a camaradagem física nos esportes: tapinhas na bunda, beijos, homens chorando juntos no vestiário... Neste momento sua masculinidade não é ameaçada, e prova que o afeto entre pares do mesmo sexo pode ser saudável.
Para o homem ser feliz, ou em outros termos, para que sua vida tenha propósito, significado e prazer, é necessário se entender, saber o que se sente, como se pensa, o que te toca, te conecta consigo mesmo, o que te move, te dá tesão. Isso é realizar a jornada da alma! E autoconhecimento é essencial para isso. Não é à toa que o aforismo "Conhece-te a ti mesmo" estava inscrito no Templo de Apolo em Delfos, na Grécia antiga - berço da civilização e filosofia ocidentais. A coragem de olhar pra si mesmo, encarar suas feridas, e tentar curá-las, acaba funcionando como uma revolução dentro do universo masculino, transformando seus protagonistas em homens mais felizes e completos. E, consequentemente, fazendo do mundo um lugar melhor.
Por Marcelo Wolf
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