50 tons de cinza traz 50 maneiras de enganar o público
"50 tons de cinza": eis uma releitura moderna de uma temática literária que, há quase três séculos teria, na pena audaciosa do Marquês de Sades a seguinte introdução:
“Amigo leitor, prepara teu coração e teu espírito para o relato mais impuro já feito desde que o mundo existe. (…) Esqueça seus pudores, seus medos, seus questionamentos morais. Aqui não há lugar para eles.”
Limites físicos, dor e domínio são temáticas comuns quando falamos de relações que envolvem práticas sadomasoquistas.
Veja o trecho abaixo.
Com uma infinidade de trechos como os reproduzidos acima, a autora do livro “50 tons de cinza, E. L. James devolveu ao público feminino o gosto pelos famosos romances eróticos. Escrito de maneira simples, sem rebuscamentos e sem poupar qualquer restrição à linguagem sexualizada, a autora mexeu com a fantasia de milhões de leitoras por todo o mundo e tornou-se, quase que instantaneamente, um fenômeno de vendas.
Não haveria mal algum nisso se as mensagens trazidas no livro e, posteriormente, no filme recém lançado e inspirado no mesmo, não estivessem repletas de conceitos equivocados e distorcidos.
A relação do casal de protagonistas, o rico empresário Christian Grey e a jovem e inexperiente Anastasia Steele, caracterizados nos já ultrapassados conceitos românticos do homem másculo e poderoso versos a frágil e deslumbrável mocinha, trazem para o público, mais uma vez, a venda da imagem do sucesso como digno de admiração e respeito. É vendida a ilusão romântica não em torno da relação, mas do dinheiro e do luxo que envolvem as artimanhas da conquista à que Anastásia é submetida.
No eixo central do romance, há a mensagem de que as tendências violentas de um homem “confuso” e “mal compreendido” poderiam ser curadas pelo verdadeiro amor, fantasia persistente em grande parte das relações atuais em que as pessoas constantemente lutam para adequar a pessoa real com quem estão se relacionando ao conteúdo de suas fantasias e necessidades.
Em uma relação sadomasoquista real, não existe a presença de vínculos afetivos verdadeiros entre os participantes e a manutenção da relação é baseada no prazer sexual obtido na dor, onde um dos parceiros é agressivo e violento enquanto o outro tem uma relação passiva e é submetido a sessões de tortura. Enquanto um sente prazer em dominar e em infringir a dor, o outro obtém prazer em senti-la enquanto é dominado.
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças, o sadomasoquismo é considerado doentio (CID F65.5) se apenas essa atividade é a fonte de estimulação mais importante do casal ou é necessária para a satisfação sexual. O sadomasoquismo pode causar agressões, traumas e até morte.
A mensagem mais enganosa do livro e do filme é transmitir ao expectador a ilusão na possibilidade da criação de um vínculo afetivo entre o casal, coisa que não aconteceria na vida real. O que eles transmitem, na verdade, é uma banalização do sexo fazendo com que as pessoas, muita vezes, acreditem que existe a necessidade de estímulos físicos mais fortes. O público é enganado quando o autor desvia o foco da relação para o ato sexual e mesmo assim tenta transmitir uma mensagem romântica do sadomasoquismo. É como se a mensagem da violência fosse, quanto mais eu sinto fisicamente a dor, mais estou presente na relação e mais “pertenço” a ela.
No sadomasoquismo, a relação existente é de coisificação do outro. O parceiro é instrumento de prazer, objeto por meio do qual, ao fazê-lo sofrer ou ao deixar-se dominar, você chegará ao ápice da satisfação sexual. Então, não há que se falar em relação amorosa. Em casos como esses, o que se daria, no máximo, é um mesquinho e precário sentimento de posse.
Onde a dor dá a tônica, não há espaço para a ternura e o aconchego do afeto. Entre achar que um tapinha não dói e ser parte de uma relação sádica, existe um caminho de dor, de culpa, de desequilíbrio e até de morte, que uma pessoa emocionalmente saudável, certamente, não deseja trilhar.
Entretanto, como em todo filme romântico, onde deveria começar uma relação “amorosa”, termina a história.
A fantasia só é tão interessante porque preenche necessidades pessoais inconscientes e momentâneas. Na prática e na rotina, a conversa muda.
Por Josie Conti*
*Psicóloga por formação, blogueira por opção. Abandonou o serviço público para manter seus valores pessoais . Hoje trabalha prioritariamente na internet com criação e seleção de conteúdo. É idealizadora e redatora-chefe desse site e da CONTI outra no Facebook.
http://www.contioutra.com/50-tons-de-cinza-traz-50-maneiras-de-enganar-o-publico/
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