A HOMOSSEXUALIDADE E O TEMPO


Mãos em prece - Albrecht Durer

Se o ser é limitado são também o seu sentimento e a razão limitados. Mas para um ser limitado não é a inteligência limitada uma limitação, ao contrário, sente-se completamente feliz e satisfeito com ela; ele sente-a e louva-a como uma força majestosa, divina; e a inteligência limitada louva por sua vez o ser limitado de quem ela é inteligência. Ambos combinam da melhor maneira; como poderiam entrar em atrito? A inteligência é o horizonte de um ser. Quão longe vejas, tão longe se estende a tua essência e vice versa. [Ludwing Feuerbach, in A Essência do Cristianismo, Editora Vozes, pg. 41]

A Homossexualidade no Tempo


As limitações da nossa sociedade, regida por padrões sociais e morais, mais ou menos limitados por dogmas e normas pouco maleáveis, são o reflexo das limitações da nossa inteligência individual. A sexualidade, de uma maneira geral, até há bem pouco tempo, era socialmente vista como um tabu. Este era um assunto particular, encerrado entre quatro paredes, mudo, escondido para o bem e para o mal. Quantas delícias vividas, quantas crianças violadas, quantas mulheres maltratadas, quantos adolescentes estuprados; pessoas que viveram aterradas, envergonhadas, com os sonhos mutilados pelo medo de experiências penosas, pessoas que vergavam sob essa agonia calada e pessoas que foram felizes.
Mas, à medida que cada indivíduo vai subindo a montanha, o seu horizonte vai-se alargado, consequentemente, a sua visão individual toma consciência de realidades antes desconhecidas (consciente ou inconscientemente) da sua razão. Este facto vai influenciar os padrões sociais e morais da sociedade, colocando as suas limitações numa fasquia mais baixa. Assim, lentamente, a sexualidade, passou a ser vista à luz de outras realidades e hoje é possível denunciar qualquer atrocidade sem medo de retaliações, em algumas sociedades é até possível, dois indivíduos do mesmo sexo, viverem abertamente um grande amor ou mesmo casarem, sem serem discriminados ou marginalizados. Mas estas sociedades são uma minoria.
Possivelmente, a homossexualidade existe desde os primórdios da humanidade; mas nas atuais sociedades conservadoras, regidas por um conjunto de valores morais hipócritas e dogmas religiosos, insistem em discriminar (mesmo em países onde a legislação é igual para homossexuais e heterossexuais) estas pessoas, porque elas se recusam a viver as suas paixões escondidas. Muita tinta já correu sobre a questão da homossexualidade, desde as religiões, no seu linguarejar bíblico e dogmático sem nexo, até à hilariante classificação da homossexualidade como doença, distúrbio psicológico ou perversão, por diversas Organizações Saúde pelo mundo fora – esta classificação foi abolida pela OMS em 1990.
Leões heréticos
Curiosamente, na natureza – não nos podemos esquecer que a humanidade também faz parte dela –, há centenas de espécies onde foram observados comportamentos homossexuais em alguns indivíduos. Em 2006 o Museu de História Natural de Oslo levou a cabo uma exposição intitulada “Contra Natura?”. Esta mostra, baseada num estudo científico, pretendeu pôr em causa a premissa de que a homossexualidade não é natural. Baleias, girafas, golfinhos, escaravelhos, cisnes e leões são apenas seis das 1500 espécies, onde já foram observados comportamentos homossexuais. Estarão também os animais a pecar, será que, quando morrerem vão arder eternamente no inferno dos animais? É possível… mas só na mente perturbada dos religiosos, pois estes animais não são excluídos dos seus grupos, apenas porque é agradável relacionarem-se sexualmente com indivíduos do mesmo sexo.
Com os seres humanos, a tolerância à homossexualidade parece ser inversamente proporcional ao desenvolvimento económico e social. Há cerca de 10 mil anos, algumas tribos da Nova Guiné perecem ter praticado certas formas de homossexualidade ritual. Este povo acreditava que o conhecimento sagrado, só poderia ser transmitido por meio de práticas sexuais, entre pessoas do mesmo sexo.
Na civilização Suméria (4000 a.e.c. – 2350 a.e.c.), práticas sexuais que hoje se entendem como extravagantes ou imorais – casamentos fictícios em honra aos deuses, estranhos rituais de fertilidade,prostituição divina (mulheres e homens que se entregavam a terceiros, em troca de dádivas para determinado templo), homens e jovens do mesmo sexo que se davam a práticas rituais, que hoje chamamos homossexualidade –, parece que eram entendidas num contexto espiritual, pois eram praticadas por sacerdotes e sacerdotisas e desprovidas dos conceitos morais que hoje lhe imprimimos.
Mais tarde, por volta 1750 a.e.c., na Babilónia, surgiu uma das mais antigas e complexa compilação de leis, elaborada pelo imperador Hammurabi, onde constam alguns privilégios, que deveriam ser dados aos prostitutos e às prostitutas, que participavam nos cultos religiosos. Isto significa que, de algum modo, estas pessoas já começavam a sofrer algum tipo de pressão social.
Os escribas da civilização egípcia (3200 a.e.c. – 250 a.e.c.), não foram pródigos em registar (o papiro erótico de Turim é um dos raros documentos escritos) ou mostrar a sua sexualidade em pinturas, baixo relevos ou esculturas – salvo alguns artefactos fálicos encontrados em túmulos e umas poucas pinturas, de valor real dúbio. No entanto, segundo o historiador espanhol José Miguel Parra Ortiz, em “A vida amorosa no Antigo Egito”, os egípcios interessavam-se por sexo, tanto como qualquer outro povo. As práticas homossexuais não eram de modo algum tabu, embora fosse dada uma grande importância ao casamento e à procriação, independentemente dos membros do casal terem ligações com indivíduos do mesmo sexo, fora de casa ou até debaixo do teto familiar. Apesar da discrição dos egípcios, quanto à vertente sexual, podemos deduzir, que a organização social era baseada nas relações heterossexuais, sendo a homossexualidade tolerada enquanto fonte de prazer.
Safo de Lesbos - Gustav Klimt
Na Grécia da Antiguidade, era socialmente aceite, um homem mais velho ter relações sexuais com outro mais jovem. Sócrates (469 a.e.c. – 399 a.e.c.), adepto do amor homossexual, dizia que este era a fonte de inspiração por excelência. O sexo heterossexual, na sua perspetiva, servia apenas para procriar. De notar que os antigos gregos, não entendiam a ideia de orientação sexual como um identificador social, a sociedade grega não diferenciava desejo e comportamento sexual, com base no facto dos seus participantes serem masculinos ou femininos, mas sim pelas normas sociais a adotar consoante cada caso. A prática sexual entre homens tinha como objetivo a educação do jovem, a sua preparação para a vida adulta e acontemplação do amor que só entre os homens poderia ter lugar, já que as mulheres, segundo a filosofia da época, eram desprovidas de intelecto e sabedoria. Há, no entanto, pelo menos uma mulher que foi exceção: Safo A Poetisa (nascida entre 630 e 612 a.e.c. – falecida em data desconhecida a.e.c.). Pouco se sabe desta mulher magnífica – política, poetisa e professora –, cuja personalidade, ousadia e talento deram origem às mais fantásticas lendas. Pelo que nos resta da sua obra, queimada em 1073 em Constantinopla e Roma, por ter sido considerada herética, pode perceber-se o amor que devotava a uma discípula da sua escola, na ilha de Lesbos, mas nada que seja claro no que respeita à aceitação, comportamento ou regras sociais para a homossexualidade feminina.
Entre os romanos, os ideais amorosos eram equivalentes aos dos gregos. A pederastia (relação entre um homem adulto e um rapaz ou jovem) era encarada como um sentimento puro. No entanto, se um homem mais velho mantivesse relações sexuais com outro de idêntica idade, estava estabelecida sua desgraça – os adultos passivos eram encarados com desprezo por toda a sociedade, ao ponto de serem impedidos de exercer cargos públicos.
Dando uma vista de olhos pela história e pela biologia, mesmo superficialmente, não é difícil perceber que, na Antiguidade, o sexo tinha como objetivo a preservação da espécie, o amor, o prazer e até o aperfeiçoamento espiritual. Mas tudo isto ficou votado ao esquecimento com o aparecimento do cristianismo. Então foi aperfeiçoada e refinada a fórmula: sexo para procriar
O judaísmo, cujos primórdios se situam entre 2000 a.e.c. e 1800 a.e.c., de uma maneira geral não considera o sexo, enquanto realidade humana, como perverso, pelo contrário, no AT, ele é incentivado em diversas situações, ainda que no sentido de procriar: “crescei e multiplicai-vos”. À exceção de Isac e José, todos os patriarcas foram poligâmicos, como era uso na época, o que faz supor uma intensa atividade sexual, mesmo que, hipoteticamente, esta fosse praticada com o intuito único de aumentar a descendência.
Adão e Eva - Tamara Lempicka
Adão e Lilith, Adão e Eva – enfim, macho e fêmea –, ao serem colocados como atores principais nos mitos da criação, legitimam, com a autoridade divina, a única forma possível da gestão do sexo: a heterossexualidade. O exercício da sexualidade fica então restrito ao quadro da instituição matrimonial, com a finalidade única de propagar a espécie. Deste modo, a legislação bíblica sobre esta matéria destina-se a regulamentar o exercício da sexualidade em função do matrimónio. Fá-lo no contexto de uma sociedade patriarcal, na qual as mulheres estão submetidas aos homens em todos os aspetos da vida e, de maneira especial, no domínio sexual – repare-se que Adão rejeitou Lilith por esta recusar a deitar-se por debaixo dele, ou seja a ser dominada por ele.
A par da bestialidade, adultério e incesto, a homossexualidade entra na categoria dos interditos sexuais, mas o AT só tem em conta a homossexualidade masculina. Em Génesis 19, 4-8, parece referir-se a uma violação homossexual coletiva. Talvez seja também o caso de Juízes 19, 22-25. No entanto ela só é formalmente proibida em Levitício 18, 22, que a considera uma abominação (toeba). Em Levetício 20, 13 é estipulada a pena capital para ambos os culpados.
Mas os preceitos da lei judaica, até o início do século IV, estavam restritos à comunidade judaica e aos poucos cristãos que existiam na altura. Foi então que o imperador romano Constantino abraçou a fé cristã, ao que parece em paralelo com a adoração ao deus Sol Invicto, mas essa história não interessa para aqui, franqueando as portas ao desenvolvimento do cristianismo. Data de 390, no reinado de Teodósio, o Grande, o primeiro registo de castigos físicos aplicados aos homossexuais.
A primeira legislação que proibia claramente a homossexualidade foi promulgada em 533, pelo imperador cristão Justiniano. Ele sujeitou todas as relações homossexuais ao adultério, para o qual se previa a pena de morte. Mais tarde, em 538 e 544, foram criadas outras leis que obrigavam os homossexuais a arrepender-se dos seus pecados e a fazer penitência. O nascimento e a expansão do islamismo, a partir do século VII, em uníssono com a cristandade, que começava a formar corpo e a alargar fronteiras, reforçaram a teoria do sexo para procriação.
Até meados do século XIV, embora a fé condenasse a luxúria, na realidade a homossexualidade, a bissexualidade e a prostituição continuaram a ser praticados, mais ou menos clandestinamente, à boa maneira cristã. Desde que praticado, longe do olhar curioso dos criados e vizinhos… não existiam represálias. A Igreja passa então por uma série de crises até que o clero se vê confrontado com os protestantes após a Reforma de Lutero. O humanismo renascentista, iniciado em Florença, espalha-se por toda a Europa. Os ideais clássicos reavivam-se e, deste modo, a liberdade sexual é acarinhada. Pintores, escritores, dramaturgos e poetas fazem questão de não esconder a sua homossexualidade. A Nobreza acompanha esta corrente e rema também contra a avalanche conservadora e retrógrada da Igreja. É célebre o caso de Frederico II da Prússia (1712-1786).
A fogueira - Giordano Bruno
Voltando um pouco atrás, no curto intervalo entre 1347 e 1351, a peste negra devastou a Europa matando cerca de 25 milhões de pessoas. Desconhecida a causa da doença, a igreja aproveitou para a apontar, como causa direta da corrupção dos costumes. Deste modo, judeus, hereges de todas as qualidades, prostitutas e homossexuais eram a causa de todos os males terrenos. A Inquisição encarregou-se, com extrema eficácia, na erradicação desses grupos. No que respeita aos homossexuais, foram tomadas medidas enérgicas, só em Florença, entre 1432 e 1502, mais de dezassete mil homens foram incriminados e três mil condenados por sodomia.
Duras leis foram aprovadas em vários países europeus e na América. Na Inglaterra, o século XIX começou com o enforcamento de vários indivíduos acusados de sodomia. Entre 1800 e 1834, oitenta homens foram condenados pela prática da homossexualidade. Só em 1861 o país aboliu a pena de morte para a prática de sodomia, substituindo-a por penas de trabalhos forçados.
Em meados do Séc. XIX a sodomia passou a chamar-se homosexualidade e a ser considerada uma doença do sistema nervoso, congénita e hereditária, que afetava o comportamento sexual. Esta ideia viria a ser considerada válida até 1979, quando a Associação Americana de Psiquiatria a retirou da lista das doenças mentais. No entanto a OMS, só em 1990 viria a tomar a mesma atitude.
Os grupos minoritários, quando pouco coesos e sem tradições comuns, como é o caso dos homossexuais, que podem surgir de qualquer cultura ou estrato social, têm mais dificuldade em combater as injustiças e desigualdades, pois não são uma “classe” em si. Deste modo, ficam muito mais vulneráveis às pressões sociais. No entanto são os cristãos e islâmicos que, na sua imensa hipocrisia e falta de humanidade, escudados por leis de há 2000 e 3000 anos, arrogantes e completamente desenquadradas da nossa realidade sociocultural, fazem uma guerra absurda aos homossexuais, vedando-lhe inclusivamente o acesso à prática da religião.
Mas não é apenas a nível da sociedade que os homossexuais encontram problemas. A família, o grupo de amigos, os colegas de trabalho, que constituem o seu mundo mais próximo e íntimo são, no entanto, os que se têm revelado mais hostis e os primeiros a segregarem. Muitas vezes fazem-no sem base em valores definidos, quase inconscientemente, apenas porque intimamente não aceitam a diferença. Esta estigmatização dificulta a natural integração social dos homossexuais, levando-os muitas vezes – principalmente adolescentes e jovens – a optarem por estilos de vida de maior risco ou mesmo marginais.
Fontes consultadas:
FonteOriginal:http://genesiselendas.wordpress.com/2012/01/10/a-homossexualidade-no-tempo/

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