Nascidos em corpo de mulher, eles lutam para se transformar fisicamente e pelo direito de usar o nome masculino na faculdade, no trabalho e na carteira de identidade
O coração de Márcio Régis Vascon batia acelerado sob a beca preta, em uma noite quente de dezembro passado. Às vésperas de completar 40 anos, faltava a Régis dar apenas alguns passos para realizar um sonho interrompido vinte anos antes. À beira do palco, sob o olhar atento de quase 500 pessoas, no anfiteatro da Universidade Paulista, em Campinas, ele estava prestes a receber o canudo de Bacharel em Direito. As batidas desenfreadas no peito, no entanto, não eram só de alegria. Eram de aflição. Com o rosto forrado de barba, o cabelo cortado rente ao crânio, o rosto anguloso e a voz grossa, nada em Régis fazia lembrar o universo feminino. Mas, ele nasceu mulher. Em seus documentos, até hoje, consta o nome de batismo — Márcia Regina — dado pela mãe. Naquela noite, havia prometido a si mesmo que não subiria ao palco se fosse chamado de Márcia. Acionou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para que tivesse direito de ser chamado por seu nome social. Um ofício determinava que a faculdade o respeitasse. Quando seu nome — Márcio Régis — foi anunciado, todos os colegas levantaram para aplaudi-lo. Ao longo dos cinco anos de curso, Régis não lutou só pelo grau de Bacharel em Direito. Lutou pela própria identidade.
Régis é um homem transexual. Diferente da homossexualidade, a transexualidade é descrita pela Organização Mundial da Saúde como um transtorno de identidade de gênero, em que o sexo biológico não condiz com a identidade de gênero da pessoa. A condição de Régis é conhecida pela sigla FTM (Female To Male, ou feminino para masculino). É um fenômeno mais raro do que aquele em que alguém nascido homem deseja transformar-se em mulher, caso da modelo brasileira Lea T. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, há uma mulher transexual a cada 30 mil pessoas e apenas um homem transexual a cada 100 mil.
Embora a transexualidade seja um fenômeno mundialmente reconhecido desde a década de 80, o Brasil avançou pouco no respeito aos direitos dos transexuais. Enquanto a Argentina aprovou, em maio, uma lei que permite que o nome, o gênero e a foto de documentos de identidade sejam modificados por qualquer pessoa maior de 18 anos que não se reconheça no gênero registrado na certidão de nascimento, aqui, essa decisão ainda cabe ao juiz e às suas convicções. Não há marco legal ou jurisprudência em relação ao resultado de processos de troca de nome. As ações chegam a levar três anos, ou mais, para ser julgadas. E, frequentemente, o resultado é negativo.
“Infelizmente, há uma influência forte dos preceitos judaico-cristãos no Judiciário, o que tem impedido decisões mais progressistas”, afirma o juiz Roberto Coutinho Borba. Em 2009, em Bagé (RS), o juiz Borba deu uma das raras decisões favoráveis à troca de nome. Uma cabeleireira, conhecida na cidade como Verônica, pôde ter seu nome de registro — Antônio — substituído pelo nome feminino. “Ela ainda não tinha sido operada para mudar de sexo e, por isso, os meus colegas não autorizaram a troca de nome. Mas ela já tinha feições femininas e sua vida estava completamente parada por conta do nome. Ela não conseguia comprovar sua identidade, abrir conta em banco, estudar, porque seus documentos de homem não condiziam com suas características femininas”, afirma Borba.
“A influência da religião no judiciário impede decisões a favor da troca de nome” Roberto Coutinho Borba, juiz de Direito
EXCLUSÃO Os juízes que optam por não autorizar a troca de nome argumentam que, sem a cirurgia de mudança de sexo, todas as transformações físicas são reversíveis. Para eles, alterar os documentos nessa condição seria facilitar o crime de falsidade ideológica, em que uma pessoa se faz passar por outra. Na prática, a opção dos juízes tem excluído milhares de pessoas de escolas, faculdades, do mercado de trabalho, enfim, da cidadania. Isso é especialmente verdade para os homens transexuais.
No caso das mulheres trans, o desejo de se transformar costuma ser mais facilmente satisfeito. Além de usar hormônios femininos e de implantar silicone para dar forma aos seios, elas têm à disposição uma técnica cirúrgica segura para criação de vagina. O Sistema Único de Saúde (SUS) realiza o procedimento gratuitamente. Em clínicas particulares, a cirurgia de neovagina pode custar até R$ 40.000. Cenário muito diferente é aquele encontrado por homens transexuais. Se, por um lado, 100% deles sonham em ter um pênis funcional e em dimensões normais, por outro, dos cinco entrevistados por esta reportagem, nenhum se disse disposto a fazer uma faloplastia. Esta consiste num conjunto de complicadas interveções cirúrgicas que promete formar um pênis de até dezoito centímetros de comprimento. Primeiro, um tubo de material cirúrgico é implantado no braço do paciente. Durante alguns meses, tecidos e enervações serão formados em torno desse tubo. Uma nova cirurgia será feita para retirá-lo do braço. Os médicos, então, usarão a pele da superfície de uma das coxas do paciente para envolver o tubo. A pele da planta do pé serve para desenhar a glande. Tudo será incorporado à genitália do trans. Embora o Hospital das Clínicas de São Paulo já realize a faloplastia, a técnica é considerada experimental. O pênis criado a partir da cirurgia raramente é capaz de gerar orgasmos, não costuma ficar ereto e, em alguns casos, é rejeitado pelo organismo, levando à necrose de toda a genitália e de parte do sistema urinário. O pós-operatório delicado pode levar à morte.
Diante dos enormes riscos envolvidos e da posição inflexível de alguns juízes, os homens trans se viram num limbo jurídico. A ação da Defensoria Pública começa a desfazer esses nós junto às faculdades e às empresas onde os transexuais estão. É uma maneira de fazer com que eles existam e sejam respeitados em seu cotidiano, entre seus colegas de classe, chefes e subordinados. “Há um decreto estadual em São Paulo que recomenda o uso do nome social em repartições públicas. Com base nele, estamos pedindo a mudança do tratamento dos trans nas faculdades e empresas privadas. Se há resistência, ameaçamos abrir um processo judicial”, afirma a defensora Maíra Diniz. “Não importa se o trans é operado ou não, isso é apenas um detalhe. Mas o nome não é um detalhe. O direito à identidade independe do sexo biológico. Trocar o nome de alguém em documentos não é difícil e não traz insegurança. Se fosse assim, o ex-presidente Lula não poderia ter incluído o apelido no nome de registro.”
PRECONCEITO Foi graças à atuação da Defensoria que Régis teve o reconhecimento público que tanto esperava no dia da sua colação de grau. Expulso de casa pela mãe aos 23 anos, assim que ela descobriu que ele tinha uma namorada, Régis trabalhou como babá e como servente de pedreiro, até passar no concurso para Guarda Civil em Campinas, São Paulo. Há seis anos, começou sua transformação física. Com a supervisão de um endocrinologista, passou a tomar uma injeção de testosterona por mês. Uma cirurgia retirou todos os órgãos sexuais femininos de Régis. Conforme a barba crescia e a voz engrossava, sua situação piorava entre os colegas de farda. “A convivência era delicada porque a guarda é extremamente machista. Até hoje, é frequente agressões contra travestis”, afirma Régis. “Um dos guardas chegou a me dizer que, se ele fosse Deus, pessoas como eu seriam queimadas na fogueira.” Para testá-lo, os colegas começaram a exigir resultados exemplares nos testes físicos obrigatórios. “Ficavam dizendo que era na corrida que eles queriam ver se eu era macho mesmo.” Régis corria mais rápido do que quase todo o pelotão, o que não é exigido de mulheres. Chegou a completar os testes com o pé torcido. “Melhor isso do que aguentar as piadinhas.” Quando pediu aos superiores para que seu nome na farda passasse de Márcia Regina para Márcio Régis, a situação se complicou. Ele chegou a sofrer sete processos administrativos ao mesmo tempo. “Eram todos sem motivo. Fui exonerado com a justificativa de que eu era incompetente. Mas a guarda nunca conseguiu provar isso e acabei readmitido por mandado judicial”, diz Régis, que nunca quis deixar a farda. Reincorporado ao trabalho, em vez de Regina, passou a sustentar Vascon, seu sobrenome, na farda. Ainda assim, o comando nunca permitiu que ele usasse o banheiro masculino em vez do feminino. “Eu ia na cara de pau mesmo.”
“Quando me chamavam por Joana, fingia que não era eu” Rodrigo, aluno do Senac
Até para entrar na faculdade, Régis quase teve problemas com a polícia. Quando a conferente de sala checou o RG do rapaz barbado com a prova do vestibular em mãos, tomou um susto. “Ela me falou: ‘Senhor, isso não pode. Por que o senhor está fazendo a prova pela Márcia?’.Tive de sair da sala sob suspeita de fraude e explicar para vários fiscais que eu mesmo era a Márcia. Comecei a prova do vestibular quase uma hora depois.”
Luiz Henrique Assunção, de 33 anos, livrou-se recentemente de constrangimentos como esses graças à ação da Defensoria Pública. Trabalhando como segurança privado há dois anos, foi só há três meses que ele deixou de usar um banheirinho apertado do supervisor (“na frente das meninas eu não ia me trocar”) e foi aceito no vestiário masculino da empresa. “Meu supervisor reuniu toda a equipe e anunciou: ‘Eu lhes apresento Luiz Henrique. É assim que vocês vão chamá-lo a partir de hoje. Qualquer falta de respeito vai ser punida severamente’. Nesse dia, a minha vida mudou, passei a ser tratado que nem gente, com o meu nome no crachá, no holerite, no armário”, conta, emocionado. Mesmo assim, há colegas que ainda o chamam de “Suelão”, um modo jocoso de falar seu nome de registro, Sueli. “Tem gente que diz: ‘Ah, eu não consigo me acostumar a te chamar de Luiz Henrique’. Eu respondo: ‘Eu sei, também não consigo falar o teu nome, vou te chamar de filho da puta, então’.” A reação agressiva é de quem já se cansou de não ter direito a ser quem é. Mineiro de Guaxupé, caçula de seis filhos, ele abandonou a escola na quinta série. “Eu não aguentava. Na hora da chamada, escondia a cabeça dentro da mochila pra não responder ao nome feminino que a professora chamava.” Um dia ele resolveu não ir mais à aula. A mãe nem com surras conseguiu demovê-lo da decisão. A inadequação se estendia ao resto da vida.
“O professor não me deixava jogar futebol. Eu entrava no meio da partida assim mesmo e saía driblando até virem me bater”, diz. “O professor gritava: ‘Sai daqui, sua menina-macho’.” Enquanto os irmãos homens eram aceitos em cooperativas rurais, Luiz era recusado no trabalho. A solução foi sair do interior. Em São Paulo, terminou os estudos em um supletivo público e entrou em um curso de tecnólogo em gestão de segurança, na UNIP. “Eu amo essa área, sempre quis ser polícia. Cheguei a passar no concurso para policial em Minas, mas desisti porque eles só me aceitariam se eu fosse PM feminina”, afirma. Sempre se recusou a revistar mulheres e a fazer segurança em banheiros femininos. “Infelizmente, estou num meio machista. Mesmo na faculdade, tinha professor que insistia em me chamar por nome de mulher. Eu não respondia e levava falta”, diz Luiz. Situação semelhante foi a enfrentada pelo aluno do curso técnico de computação do Senac, Rodrigo*. Mesmo com bolsa integral de estudos e tendo certeza de que quer seguir carreira na área, pensou em desistir do curso. “Quando a professora chamou Joana*, na sala de aula, tomei um susto. Eu já havia explicado a situação na secretaria. Fingi que não era comigo. Na hora, me senti extremamente humilhado.” Na sala de Rodrigo, os alunos são predominantemente homens. Nenhum deles sequer desconfia que o moleque barbudo, gordinho, que já foi casado com uma mulher, que é padrasto de duas crianças e ama jogar videogame, nasceu menina, com o nome de Joana. “Eu não quero que ninguém saiba. Por que as pessoas mal me conhecem e já precisam saber tudo do meu passado? Ninguém se expõe assim, por que tenho que passar por isso?” Procurados pela reportagem, tanto o Senac quanto a UNIP garantiram que os alunos estão registrados com o nome social na lista de chamada, em acordo com a determinação da Defensoria Pública.
“Os meninos trans sofrem mais porque têm
que se inserir em um meio machista”
Maria Lúcia Pereira, psicóloga
que se inserir em um meio machista”
Maria Lúcia Pereira, psicóloga
“Os meninos trans sofrem mais do que as meninas porque têm que se inserir em um meio frequentemente preconceituoso. Os homens não os aceitam fácil”, afirma Maria Lúcia Pereira, psicóloga que atende os trans no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS de São Paulo. “Eles querem namorar firme, com mulheres heterossexuais. Querem privacidade, pouca gente de seu convívio social sabe que nasceram mulheres e se transformaram.” Maria Lúcia é uma das responsáveis por fornecer laudos definitivos de transexualidade, nos quais alguns juízes têm se apoiado para dar decisões favoráveis à mudança de nome mesmo para quem ainda não fez a cirurgia. A mudança do nome pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Não é um exagero. “Tenho um paciente homem transexual que era chamado pelo nome feminino no ensino médio. Os colegas da escola resolveram ‘corrigi-lo’. Ele foi espancado e, literalmente, crucificado. Passou três meses na UTI. Até hoje, tem marcas de pregos nos pulsos”, diz Maria Lúcia. “Eles são vulneráveis. Numa batida, o policial não acredita que os documentos de mulher sejam daquele homem e, às vezes, obriga a pessoa a tirar a roupa.”
Todo transexual vive uma batalha entre desistir de si mesmo e lutar contra o mundo. Depressão e suicídios são comuns entre eles. Luiz Henrique nunca mais bebeu suco de caju, depois que, há cinco anos, tomou veneno de rato misturado à bebida. Foi a forma que encontrou para curar a dor de sua existência. “Fiquei quase 48 horas inconsciente, mas sobrevivi”, diz. Se não sabia como se relacionar com a sociedade, achou que a melhor opção seria dedicar a vida a Deus. Internou-se num convento. Acabou namorando uma noviça. Ambos foram expulsos do convento. Hoje, aos 30 anos, trabalha em um hospital, cursa faculdade, ostenta uma barba rala e já retirou os seios e os órgãos femininos. “Eu sou homem e hoje me sinto uma pessoa como qualquer outra, não penso em acabar com a minha vida”, afirma Luiz Henrique, segurando nas mãos a recém-conquistada decisão de um juiz que lhe garantiu a mudança do nome feminino para o masculino. Ele espera ansioso pelo implante de silicone, que lhe dará testículos, e pela cirurgia de descolamento do clitóris, que formará um micropênis.
A mudança nos documentos ainda não é realidade para todos. Mas a esperança de circular em seu meio social com o nome que escolheu é. “Quero ser chamado de Luiz Henrique aonde for, e vou enfrentar o que vier para conseguir isso. Conheço os meus direitos. Quando era criança, acabei tendo de deixar a escola. Agora não saio mais, a faculdade e o trabalho que se adaptem a mim.”
*os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados
Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2012/10/transexuais-o-drama-de-homens-que-nasceram-em-corpo-de-mulher.html
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