Medalha de prata nos últimos Jogos Panamericanos, Joanna treinou duro para trazer da Olimpíada de Londres “o resultado de sua vida”. Mas, na manhã da prova, desmaiou no chuveiro, cortou o supercílio e não pode competir. Aqui, ela conta detalhes da queda, dos abusos sexuais que sofreu na infância e da lei antipedofilia que acaba de ganhar seu nome
Em 2004, Joanna Maranhão fez a prova dos 400 medley (aquela em que o atleta nada todas as modalidades) em 4 minutos, 40 segundos e 00 centésimos. Era a primeira vez na história que uma atleta brasileira chegava à final olímpica em provas femininas. Joanna, então com 17 anos, surgia no noticiário como um fenômeno em ascensão. Mas, enquanto o mundo a conhecia como nadadora, ela se descobria como mulher e era obrigada a encarar um fato que por tantos anos evitara: os traumas deixados por abusos sexuais sofridos aos 9 anos de idade.
O agressor — um conhecido técnico de natação de Recife cujo nome não publicamos sob ameaça de processo — era amigo da família de Joanna e seu treinador. “Ele esperava as crianças saírem da piscina e me pedia para encostar na escada e abrir as pernas. Depois me bolinava e se esfregava em mim”, disse a atleta à Marie Claire em uma longa entrevista feita em dois encontros. O primeiro aconteceu em Belo Horizonte, cidade onde vivem Joanna e o namorado, o judoca Luciano Corrêa. O segundo, no Rio de Janeiro, onde ela treina pelo Clube de Regatas do Flamengo.
A história dos abusos veio à tona em 2008, quando a nadadora, ao explicar o baixo rendimento, comentou a dor que sentia ao reviver o passado na terapia. Como a atleta já estava com 21 anos, o crime tinha prescrito e o agressor não só não foi punido, como processou Joanna e sua mãe. “Outras três pessoas me ligaram para dizer que tinham passado por isso nas mãos desse técnico. Ele é pedófilo e está solto”, disse. A história só não se repetirá com outras pessoas por causa da aprovação da Lei no 12.650, que ganhou o nome da nadadora e foi sancionada em maio pela presidenta Dilma. Agora, vítimas de violência sexual infantil podem ver punidos os agressores mesmo que só os denunciem a partir dos 18 anos. Isso porque a prescrição do crime (que leva entre dez e vinte anos) só vai começar a ser contada a partir da data em que a vítima atingir a maioridade e não mais a partir do abuso. “Nas minhas conversas com Deus, sempre me perguntei porque tinha passado por tudo aquilo e não via resposta”, confessou Joanna. “Mas em Brasília, durante a CPI da Pedofilia que gerou a lei, eu entendi. Fui violentada na piscina, o lugar que mais amo na vida, para evitar que outras crianças passem pelo que eu passei.” Tomara.
MARIE CLAIRE O que deu errado em Londres? Por que se preparou tanto e não nadou?
Joanna Maranhão Sinceramente, não sei. Fiz o índice olímpico e estava muito bem nos treinos. No dia da prova dos 400 medley, que era minha melhor modalidade, acordei às 7h30 da manhã, superanimada. Fui ao banheiro, fiz xixi e entrei no banho. Depois, só lembro de estar no chão do box, com o rosto ensanguentado e a Rosane (Carneiro, sua técnica) gritando desesperada. Desmaiei do nada e fiz um corte no supercílio, bem no lugar do óculos, o que me impediu de fazer a prova para a qual treinei os últimos quatro anos. Dois dias depois, nadei os 200 medley e fui para a semifinal. Mas não consegui ir para a final.
MC Um mês antes da Olimpíada, você também desmaiou na piscina. Vê ligação entre os dois episódios?
JM Tenho pensado nisso, mas não vejo. O primeiro mal-estar foi na época das declarações da Xuxa sobre os abusos sexuais que sofreu na infância. A Lei Joanna Maranhão tinha acabado de ser aprovada e os jornalistas não paravam de me ligar. Aquilo mexeu comigo e eu desmaiei no treino. Por isso a comissão técnica me proibiu de tocar no assunto até a data das provas em Londres. Mas lá, eu não estava insegura, não sei o que houve. Foi uma porrada sinistra. Imaginei perder, ter crise pânico... mas não nadar por causa de um corte, jamais. Achei que a prova começava na hora da largada e hoje sei que não. Minha prova foi outra e começou muito antes.
MC Quando?
JM No momento em que eu decidi que não ia mais ser refém do meu passado e que continuaria com a natação. A Olimpíada seria a coroação de um processo. Mas minha vitória é outra: continuar nadando. Fiz as pazes com a piscina quando aceitei minha história e fui fazer terapia para encarar meus traumas, resultados dos abusos que sofri na infância.
MC Você tinha 9 anos quando aconteceu. Por que resolveu revelar tudo em 2008, aos 21?
JM Por ingenuidade. Eu estava dando uma entrevista para um jornal esportivo e a repórter me perguntou por que meu rendimento caiu entre 2004 e 2008. Como era justamente o período em que eu mais tinha sofrido e trabalhado tudo aquilo na terapia, respondi com naturalidade “olha, eu fui molestada pelo meu treinador aos 9 anos e só me dei conta da gravidade disso durante a adolescência”. Lembro que ela até falou “Joanna, posso publicar isso?”. Eu disse que sim, porque não achava que fosse virar um assunto de proporções nacionais.
MC Como o treinador agia?
JM Nossas famílias eram amigas e ele me dava carona para casa depois da natação. No final do treino, dispensava as outras crianças e me mandava entrar na piscina de novo (faz uma pausa longa e pensa). Não sei porque eu entrava, era criança, achava que tinha que obedecer... Ele me pedia para encostar na escada e abrir as pernas. E aí ficava me bolinando, se esfregando em mim. Eu pedia para ele parar. Ele respondia “calma, já tá acabando”. Isso aconteceu várias vezes, mas não foi tão doloroso quanto o que houve na casa dele.
MC O que aconteceu?
JM Nesse dia, antes de me levar para minha casa, ele parou na dele. Me colocou na cama da mulher, tirou minha roupa inteira e foi a pior coisa... Não me estuprou, mas me bolinou, machucou, me obrigou a fazer sexo oral. Acho que quanto mais eu sofria, mais ele gostava. Então, eu chorava calada, muda, para acabar logo.
MC Qual foi a reação do técnico quando tudo veio à público?
JM Como não falei o nome dele, demorou para as pessoas descobrirem. Até que um jornal de Recife fez a pesquisa e escreveu que aos 9 anos eu treinava no Clube Náutico de Recife e publicou a foto do cara. A reação dele foi processar a mim e a minha mãe por difamação e calúnia. Tive que encará-lo no tribunal e foi horrível, achei que ia morrer. Mas a partir da hora em que eu contei tudo, outras pessoas também falaram que foram assediadas por ele. Neste ano, um pouco antes de eu ir para Londres, a esposa de um rapaz que havia sido abusado ligou no consultório da minha mãe. Contou que o marido já tinha 30 e não falaria sobre o assunto, mas se solidarizava com a minha dor.
MC Você tem notícias mais recentes desse técnico?
JM Só sei que ele diz que eu inventei tudo e que, se alguma matéria sair associando meu nome ao dele, tomamos um processo eu e o jornalista que escrever a matéria (Nota da redação: basta um clique no Google para identificá-lo). O crime já havia prescrito quando veio à tona e, por isso, ele recorreu a uma lei que permite que seu nome seja preservado. Espero que, agora, isso mude. Se todo esse horror que ele fez comigo faz algum sentido, é esse: impedir que outros monstros abusem das crianças e fiquem impunes.
MC Como virou nome de lei ?
JM Em 2009, fui procurada pelo senador Magno Malta que chefiava a CPI da Pedofilia. Eu e minha mãe viajamos até Brasília e ele nos contou que estava chocado com a minha história e que pretendia batizar um projeto de lei com o meu nome. No dia 18 de maio deste ano, a lei foi aprovada.
Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI317781-17735,00-JOANNA+MARANHAO+MINHA+VITORIA+FOI+OUTRA.html
A história dos abusos veio à tona em 2008, quando a nadadora, ao explicar o baixo rendimento, comentou a dor que sentia ao reviver o passado na terapia. Como a atleta já estava com 21 anos, o crime tinha prescrito e o agressor não só não foi punido, como processou Joanna e sua mãe. “Outras três pessoas me ligaram para dizer que tinham passado por isso nas mãos desse técnico. Ele é pedófilo e está solto”, disse. A história só não se repetirá com outras pessoas por causa da aprovação da Lei no 12.650, que ganhou o nome da nadadora e foi sancionada em maio pela presidenta Dilma. Agora, vítimas de violência sexual infantil podem ver punidos os agressores mesmo que só os denunciem a partir dos 18 anos. Isso porque a prescrição do crime (que leva entre dez e vinte anos) só vai começar a ser contada a partir da data em que a vítima atingir a maioridade e não mais a partir do abuso. “Nas minhas conversas com Deus, sempre me perguntei porque tinha passado por tudo aquilo e não via resposta”, confessou Joanna. “Mas em Brasília, durante a CPI da Pedofilia que gerou a lei, eu entendi. Fui violentada na piscina, o lugar que mais amo na vida, para evitar que outras crianças passem pelo que eu passei.” Tomara.
MARIE CLAIRE O que deu errado em Londres? Por que se preparou tanto e não nadou?
Joanna Maranhão Sinceramente, não sei. Fiz o índice olímpico e estava muito bem nos treinos. No dia da prova dos 400 medley, que era minha melhor modalidade, acordei às 7h30 da manhã, superanimada. Fui ao banheiro, fiz xixi e entrei no banho. Depois, só lembro de estar no chão do box, com o rosto ensanguentado e a Rosane (Carneiro, sua técnica) gritando desesperada. Desmaiei do nada e fiz um corte no supercílio, bem no lugar do óculos, o que me impediu de fazer a prova para a qual treinei os últimos quatro anos. Dois dias depois, nadei os 200 medley e fui para a semifinal. Mas não consegui ir para a final.
MC Um mês antes da Olimpíada, você também desmaiou na piscina. Vê ligação entre os dois episódios?
JM Tenho pensado nisso, mas não vejo. O primeiro mal-estar foi na época das declarações da Xuxa sobre os abusos sexuais que sofreu na infância. A Lei Joanna Maranhão tinha acabado de ser aprovada e os jornalistas não paravam de me ligar. Aquilo mexeu comigo e eu desmaiei no treino. Por isso a comissão técnica me proibiu de tocar no assunto até a data das provas em Londres. Mas lá, eu não estava insegura, não sei o que houve. Foi uma porrada sinistra. Imaginei perder, ter crise pânico... mas não nadar por causa de um corte, jamais. Achei que a prova começava na hora da largada e hoje sei que não. Minha prova foi outra e começou muito antes.
MC Quando?
JM No momento em que eu decidi que não ia mais ser refém do meu passado e que continuaria com a natação. A Olimpíada seria a coroação de um processo. Mas minha vitória é outra: continuar nadando. Fiz as pazes com a piscina quando aceitei minha história e fui fazer terapia para encarar meus traumas, resultados dos abusos que sofri na infância.
"Fiz as pazes com a piscina quando aceitei minha
dor, voltei à terapia e encarei os
traumas do abuso sexual”
dor, voltei à terapia e encarei os
traumas do abuso sexual”
MC Você tinha 9 anos quando aconteceu. Por que resolveu revelar tudo em 2008, aos 21?
JM Por ingenuidade. Eu estava dando uma entrevista para um jornal esportivo e a repórter me perguntou por que meu rendimento caiu entre 2004 e 2008. Como era justamente o período em que eu mais tinha sofrido e trabalhado tudo aquilo na terapia, respondi com naturalidade “olha, eu fui molestada pelo meu treinador aos 9 anos e só me dei conta da gravidade disso durante a adolescência”. Lembro que ela até falou “Joanna, posso publicar isso?”. Eu disse que sim, porque não achava que fosse virar um assunto de proporções nacionais.
MC Como o treinador agia?
JM Nossas famílias eram amigas e ele me dava carona para casa depois da natação. No final do treino, dispensava as outras crianças e me mandava entrar na piscina de novo (faz uma pausa longa e pensa). Não sei porque eu entrava, era criança, achava que tinha que obedecer... Ele me pedia para encostar na escada e abrir as pernas. E aí ficava me bolinando, se esfregando em mim. Eu pedia para ele parar. Ele respondia “calma, já tá acabando”. Isso aconteceu várias vezes, mas não foi tão doloroso quanto o que houve na casa dele.
MC O que aconteceu?
JM Nesse dia, antes de me levar para minha casa, ele parou na dele. Me colocou na cama da mulher, tirou minha roupa inteira e foi a pior coisa... Não me estuprou, mas me bolinou, machucou, me obrigou a fazer sexo oral. Acho que quanto mais eu sofria, mais ele gostava. Então, eu chorava calada, muda, para acabar logo.
MC Qual foi a reação do técnico quando tudo veio à público?
JM Como não falei o nome dele, demorou para as pessoas descobrirem. Até que um jornal de Recife fez a pesquisa e escreveu que aos 9 anos eu treinava no Clube Náutico de Recife e publicou a foto do cara. A reação dele foi processar a mim e a minha mãe por difamação e calúnia. Tive que encará-lo no tribunal e foi horrível, achei que ia morrer. Mas a partir da hora em que eu contei tudo, outras pessoas também falaram que foram assediadas por ele. Neste ano, um pouco antes de eu ir para Londres, a esposa de um rapaz que havia sido abusado ligou no consultório da minha mãe. Contou que o marido já tinha 30 e não falaria sobre o assunto, mas se solidarizava com a minha dor.
MC Você tem notícias mais recentes desse técnico?
JM Só sei que ele diz que eu inventei tudo e que, se alguma matéria sair associando meu nome ao dele, tomamos um processo eu e o jornalista que escrever a matéria (Nota da redação: basta um clique no Google para identificá-lo). O crime já havia prescrito quando veio à tona e, por isso, ele recorreu a uma lei que permite que seu nome seja preservado. Espero que, agora, isso mude. Se todo esse horror que ele fez comigo faz algum sentido, é esse: impedir que outros monstros abusem das crianças e fiquem impunes.
MC Como virou nome de lei ?
JM Em 2009, fui procurada pelo senador Magno Malta que chefiava a CPI da Pedofilia. Eu e minha mãe viajamos até Brasília e ele nos contou que estava chocado com a minha história e que pretendia batizar um projeto de lei com o meu nome. No dia 18 de maio deste ano, a lei foi aprovada.
Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI317781-17735,00-JOANNA+MARANHAO+MINHA+VITORIA+FOI+OUTRA.html
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