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O primeiro relato de monogamia que se tem na História remete ao antigo Egito, cerca de 900 a.C. Segundo os arqueólogos, naquela antiga civilização as uniões já eram instituições formais, como mostram diversas obras de arte daquele povo. Havia contratos de casamento, onde já eram estabelecidos os direitos da esposa em caso de divórcio ou viuvez. Segundo o professor de História Danilo José Figueiredo, “apesar de a monogamia ser a regra, o Faraó, e apenas ele, estava livre para se casar com quantas mulheres quisesse. Essas mulheres eram distribuídas em três categorias de importância: concubinas, Esposas Secundárias e a Grande Mulher do Rei. Qualquer mulher que o Faraó desejasse (…) poderia ser uma Concubina. Essas esposas terciárias habitavam o harém do Faraó e eram verdadeiras escravas sexuais do Semi-Deus. Estavam sempre bem limpas e cuidadas estando à disposição do Faraó para saciar seus impulsos sexuais”.
Na antiga Grécia predominava um machismo não muito diferente. Mulheres, crianças e escravos eram propriedade dos homens. A importância da mulher na sociedade grega era tão insignificante que nem mesmo em seu noivado – quase sempre contra sua vontade – ela podia comparecer. E logo após o casamento, os homens, no intuito de evitar o adultério de suas esposas, adquiriam cães ferozes e/ou eunucos (homens castrados que tinham como única função vigiar a esposa de seu patrão). Em Esparta, na mesma época, a poligamia era uma prática comum e socialmente aceitável, onde homens podiam ter várias mulheres ou até mesmo dividirem uma única.
No Império Romano o casamento funcionava apenas como um meio para manutenção da família. A idéia era de que à esposa cabia apenas a função de procriadora. Assim, o prazer erótico (ou o desfrute sensual) ficava reservado às amantes, transformadas em concubinas e aceitas pela sociedade. A palavra matrimonium era usada para definir o papel da mulher casada, ou seja, o de ser mãe. Em contraposição, patrimonium estabelecia o papel que cabia ao homem, que era o de gerir os bens.
Percebe-se que, ao contrário do que se possa pensar, a monogamia não foi fruto do amor individual. Na obra A ideologia alemã, Marxs e Engels afirmam que “os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para deles herdarem. Quanto ao mais, o casamento era para eles uma carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que estavam obrigados a cumprir”. Os autores observam ainda que “a monogamia não aparece na história, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre sexos”.
No artigo intitulado Vos declaro marido e mulher, publicado pela revista Super Interessante (05/1996), os autores lembram ainda que, ao reconhecer o significado político do casamento, a Igreja instituiu, em meados do século IX, a cerimônia religiosa, a qual não vigorou de imediato. Até então ela não admitia que no casamento pudesse haver um bem positivo ou que o afeto entre o marido e a mulher fosse belo e desejável. Resultado: o casamento era visto como algo repugnante e poluído, definindo até mesmo como superior quem optava por não casar. Somente a partir de 1439, depois que o Concílio de Florença transformou o matrimônio no sétimo sacramento, o papa Eugênio IV conseguiu impor sua autoridade. O casamento tornou-se então indissolúvel – “o que Deus une, o homem não separa” -, e a poligamia e o concubinato, interditados. Regras que prevalecem até os dias atuais. Graças à consideração do casamento como sacramento e do adultério como pecado, a Igreja passava a assumir a responsabilidade pela criação do sentimento de culpa – no caso do rompimento do contrato de fidelidade – entre os cônjuges. A ela é igualmente lícito atribuir-se a intocabilidade deste mito, que é a monogamia.
Contrariando o que comumente se diz, a poligamia é consideravelmente mais presente do que a monogamia. Recentes pesquisas antropológicas, efetuadas em universidades americanas, indicam que numa lista dos 250 povos mais importantes, estudados no início do século passado, nada menos que 193 adotavam a poligamia. Considerando que o discurso predominante defende o contrato de fidelidade, a conclusão não menos óbvia é de que a monogamia é o discurso da hipocrisia.
Atualmente a monogamia pode ser a regra, mas não é a prática corrente – nem mesmo para os animais. Recorrendo à mesma tecnologia do DNA utilizada nos tribunais, os biólogos hoje são capazes de determinar com absoluta segurança a paternidade nos animais. Os resultados têm sido surpreendentes: mesmo entre as espécies anteriormente consideradas monogâmicas – a esmagadora minoria -, enganar o parceiro é uma prática comum, e para ambos os sexos. É o que dizem David P. Barash e Judith Eve Lipton, autores do livro O mito da monogamia: fidelidade e infidelidade em animais e pessoas. Segundo eles, novas pesquisas científicas permitiram alcançar respostas definitivas para algumas perguntas, fazendo concluir que, ao contrário do que se pensa, o desejo sexual por múltiplos parceiros é natural.
Do ponto de vista estritamente social, os pilares da monogamia surgem e se mantém a partir da idéia da importância da família, da sua manutenção como uma entidade íntegra e harmoniosa. Segundo Engels, a monogamia teria sido “a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas e, em concreto, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente”. Fato é que muitos casamentos já esgotados, com a data de validade vencida há muito tempo, ainda perduram por anos. Além do desejo de se manter a integridade familiar, ainda existe o fator econômico, com os seus imperativos e exigências peculiares. A psicóloga Regina Navarro Lins, em seu livro Na cabeceira da cama, ressalta que a idéia atual do casamento “até que a morte os separe” não possui nenhum fundamento, já que as pessoas até a Revolução Industrial, no final do século XVIII, moravam predominantemente no campo, o que as fazia sentir afetivamente amparadas. Nessa época, os casamentos aconteciam por razões econômicas e políticas, e por essa razão é que duravam a vida toda. A autora ainda lembra que não havendo romance nem expectativas de satisfação sexual, não havia decepções, e ninguém pensava em se separar.
Apesar de sua herança pouco ética e bastante discutível, a monogamia mantém-se alicerçada, até os tempos atuais, no sentimento de posse e seu sucedâneo mais comum e doloroso, o ciúme. Trata-se, sem dúvida, de um estado emocional bastante complexo, que leva um indivíduo a se sentir único e especial numa relação. Assim é definido o amor romântico, que, com mais de 800 anos, certamente é uma das propagandas mais bem difundida e sucedida da História. Seu carro-chefe, conhecido mundialmente, é a história de amor entre Romeu e Julieta, escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. No término da história, os dois protagonistas preferem morrer a viver um sem o outro. Para completar, a partir da década 40, o amor romântico é fortemente alimentado por Hollywood. “Existe uma campanha, incorporada por todos os meios de comunicação, que procura nos convencer de que só é possível ser feliz vivendo um romance, que traz a ilusão do amor verdadeiro. Tão grande quanto o desejo de vivê-lo. Por isso, poucos suportam ouvir que, apesar de toda a magia prometida, ele não passa de uma mentira. Sem contar que traz mais tristeza do que alegria, além de muito sofrimento”, observa Regina Lins. Entre as características deste mito, ela questiona a veracidade de pontos como: só é possível amar uma pessoa de cada vez; quem ama não sente tesão por mais ninguém; o amado é a única fonte de interesse do outro; quem ama sente desejo sexual pela mesma pessoa a vida inteira; qualquer atividade só tem graça se a pessoa amada estiver presente; todos devem encontrar um dia a pessoa certa; o amor verdadeiro é completo e insubstituível.
Atrelado a este sentimento de posse, vem o medo de descobrir que não se é único e insubstituível. O webmaster do site Poliamor Brasil, Mario Mazzini, também médico e escritor, observa que “a monogamia é muito baseada no ciúme, que é (…) fruto da insegurança, do medo de perder um objeto afetivo que é visto como essencial à sobrevivência. Crianças sentem ciúme dos irmãos, do pai ou da mãe, porque são incapazes de viver sem o apoio dos pais. Adultos autônomos não teriam porque ter esse sentimento, a menos que mantenham uma insegurança de nível infantil. A idéia de uma relação monogâmica exclusiva é uma forma de satisfazer o desejo infantil de ser o dono exclusivo(…), e assim evitar o medo da perda gerado pela insegurança”.
Tal insegurança, representada como defesa na prática da monogamia, visa também diminuir as chances de comparações, constatações e perdas que supostamente viessem a ocorrer caso o contrato de fidelidade não existisse, e, por conseqüência, houvesse liberdade e espaço para a poligamia. A respeito desse eventual aumento das chances de perda do parceiro, caso ele não seja adepto da monogamia, Mazzini lembra que “o risco está presente sempre em qualquer relação, mesmo que não estejamos conscientes dele. O fato de alguém ter liberdade para ter relações extraconjugais não aumenta necessariamente este risco, podendo até mesmo diminuí-lo. Uma das causas da deterioração das relações conjugais é justamente a sensação de garantia de sua manutenção; em função disso os cônjuges acabam por não se esforçar muito para manter o interesse do outro na relação”. Ele ressalta ainda um ponto interessante e comumente bastante deturpado, quando o assunto é abordado: “Já vimos através de opiniões de outras pessoas – inclusive através de artigos e pesquisas sobre a motivação dos casos extraconjugais – que, muito freqüentemente, o que motiva as pessoas a terem casos extraconjugais é a insatisfação com o atual cônjuge. Ou seja, a insatisfação com o cônjuge nesses casos não se instala a partir da relação extraconjugal, mas a precede”. E finalmente conclui que “o fato de os cônjuges se permitirem ter relações extraconjugais, enquanto as coisas ainda estão bem entre eles, na verdade favorece o auto-conhecimento e o conhecimento do outro, (…) mas se acontecer de uma das partes preferir terminar a relação atual e partir para uma outra relação, é porque esta relação já não era suficientemente satisfatória. E, se assim for, isto ocorreria de qualquer forma, com ou sem liberdade para relacionamentos extraconjugais.”
Como já constatado, a atração física e o desejo sexual por alguém além do parceiro, é um instinto comum e inegável entre os animais – o que nos inclui, claro. Com o ser humano, no entanto, o que prevalece é o desejo de que o parceiro seja monogâmico (pelos motivos já explicados acima), e a tentativa desesperada de manter uma coerência nesse aspecto, tornando assim, mesmo que contra o próprio instinto, toda a relação monogâmica. Segundo a antropóloga americana Margaret Mead, “a monogamia é o mais difícil dos arranjos maritais entre humanos”. Não é de se admirar, portanto, a inevitabilidade do conflito gerado entre o que é certo socialmente e aquilo que se deseja intimamente. Em larga medida, trata-se de um conflito não resolvido. E na sua irresolução, pode surgir o que comumente chama-se de “traição”.
Dá-se o nome de “traição” quando ocorre a ruptura do contrato de fidelidade de uma ou ambas as partes em um relacionamento que envolva o desejo sexual. Essa atitude põe por água abaixo o conceito de monogamia previamente “combinado” ou, o que é mais comum, implícito nos relacionamentos atuais. Ela possui algumas peculiaridades muitíssimo curiosas, desde a relação entre sua existência e as conseqüências práticas até a aparente imperdoabilidade de quem se sente “traído”.
Quando somos roubados, não importa se somos avisados, o roubo não perde sua característica por causa disso. Quando perdemos um ente querido, a própria ausência dele já nos traduz todo o sentimento de perda que a situação envolve; talvez aconteça de sentirmos essa perda ao saber, mas isso é apenas o adiantamento do sentimento de perda que certa hora chegará por vias práticas, afinal de contas, se você não sente falta de alguém, perder essa pessoa não será algo muito relevante em sua vida. Até mesmo quando somos insultados há um peso prático, pois a atitude apenas traduz a agressividade da situação. Podemos ainda citar a própria “traição”, que, acarretando numa diminuição da dedicação oferecida pelo “parceiro-traidor”, já apresenta um motivo prático e auto-suficiente para sua negação; não sendo necessária assim sua afirmação verbal.
Para o monógamo, o que importa é o simples – e irrelevante – saber do que ele chama de “traição” (mais abaixo há uma outra visão deste termo). Mas essa atitude não gera obrigatoriamente um efeito prático, nem mesmo de forma indireta. O rompimento não necessita de uma causa prática, mas unicamente ideal. Ou seja, a “traição”, ocorrendo sem que seja verbalizada, não é (necessariamente) percebida pelo parceiro “traído”. Curiosamente ela também inexiste no mundo prático do “parceiro traído”, caso ele tome conhecimento. Conclui-se então que ela não possui necessariamente – e raramente – um peso prático, mas simplesmente ideológico, especialmente por tentar sempre ser justificada, já que dificilmente se encontra um monógamo admitindo que sua escolha é basicamente uma questão de gosto, ou seja, não possui qualquer explicação ou razão aparente.
Com uma visão bem crítica a respeito dessa posição, Regina Lins diz que “a única coisa que importa numa relação é a própria relação, os dois estarem juntos porque gostam da companhia um do outro e fazerem sexo porque sentem prazer. Todas as restrições impostas e aceitas com naturalidade ameaçam muito mais a relação do que a infidelidade”. Já Mazzini contesta a posição monogâmica alegando que “podemos ter vários amigos, mas não nos permitimos ter vários amantes. Um pai e uma mãe podem ter vários filhos e amar a todos, não igualmente, mas a cada um de forma diferente, ou seja, há espaço para todos. Portanto, o fato de se desejar ter uma relação com outra pessoa, e eventualmente realizar este desejo, não significa que se tenha deixado de amar ou se esteja insatisfeito como o parceiro, significa apenas que uma pessoa só, por melhor companheira que seja, pode não ser capaz de preencher todas as necessidades afetiva. Um relacionamento eventual com outra pessoa não prejudica [necessariamente] a relação principal, pelo contrário, pode até ajudar na manutenção e melhora da mesma, uma vez que cada um deixa de sentir o outro como um carcereiro. E não há nada de errado (a não ser devido a um tabu) em ter outros relacionamentos eventuais, sem que isto afete a relação estável com um parceiro com o qual se escolheu partilhar os demais aspectos da vida, inclusive a maternidade/paternidade”.
É unânime entre quem adota monogamia: numa situação hipotética, onde é vivido o melhor ano da vida de um monógamo, graças a um amor até então utópico, onde o parceiro proporciona atenção, dedicação, carinho, prazer e momentos únicos que beiram a perfeição; tudo isso deixa de ter seu valor se no fim desse ano o monógamo fica sabendo que seu parceiro manteve nesse período casos paralelos. Esse momento especial vivido e sentido se esvai graças a uma idéia que, ao que tudo indica, beira a insanidade. Numa recente pesquisa sobre o casamento ideal, realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenada pela antropóloga Miriam Goldenberg, foi constatado que a esmagadora maioria de homens e mulheres considera, entre outras coisas, a fidelidade mais importante do que o companheirismo, sinceridade e carinho, por exemplo. As justificativas dadas por essas pessoas tendem quase sempre a uma falácia circular, ou seja, demonstra que a conclusão é apenas um outro modo de expressar uma das premissas.
É importante ressaltar os inúmeros relacionamentos que se desgastam, ou até mesmo deixam de existir, quando um dos parceiros se sente “traído”. A quebra da monogamia, segundo quem a pratica, se apresenta como algo gravíssimo e imperdoável. Não é raro ouvir quem admita tolerar tudo (ou quase tudo) num relacionamento, menos a “traição”. Eis aqui uma demonstração da tentativa de cumprir, de forma inquestionável, o amor romântico. A princípio, é comum imaginar que esta posição tenha algum tipo de embasamento ou justificativa – ainda mais considerando a convicção com que é propalada. E como é possível notar, a monogamia raramente é afirmada como apenas uma preferência, sem grandes pretensões para qualquer tipo de explicação ou razão, como acontece com as escolhas por uma dada cor, comida ou cheiro, por exemplo. Sendo assim, ela é uma posição ideológica, necessitando, portanto, de uma base argumentativa.
Muitos podem justificar essa posição alegando que a mentira por si só já é motivo para invalidar a “traição”. Você gostaria de saber que foi enganado? Confiaria em alguém que já mentiu para você? Uma mentira agradável pra você é melhor do que uma verdade cruel? Eis certamente algumas das questões levantadas durante a contra-argumentação do monógamo. E aqui entra inclusive a ética, tornando as questões então ainda mais importantes e delicadas. Mas é preciso salientar dois pontos:
1- Por que mentir? Na verdade, a chamada “traição” só passa a ser uma mentira quando se pré-estabelece um relacionamento monogâmico. Então não há sentido em se mentir quando é possível deixar tudo de forma bem clara e honesta, ou seja, não propondo a monogamia.
2- Na prática, o que é a mentira? Quando se diz “vou te pagar 40″, mas se paga apenas 30, essa mentira tem um peso prático, ou seja, ela é percebida, independente da mesma ser verbalizada ou não. Ou quando se diz “volto às 21:00″, mas na realidade se volta às 10, essa mentira, mais uma vez, tem um valor prático e não depende de sua afirmação, pois por si só já é percebida. Que peso teria “traição” se sua existência fosse desconhecida? A resposta é óbvia: nenhum.
Apesar de o rompimento do contrato de fidelidade não gerar nenhuma mudança inerente, o monógamo costumar argumentar: “mas você gostaria que alguém mentisse para você?”. Essa pergunta gera automaticamente uma contra-pergunta: “qual seria a influência prática dessa mentira?”. Sim, é claro que todos tendem a preferir a verdade. Mas no caso se escolhe a verdade pela verdade apenas, ou a verdade por um motivo? Por que a verdade?
Buscamos a verdade para não sermos enganados, ou seja, manipulados e prejudicados de alguma forma. Se a mentira não provoca nenhum tipo de dano (mesmo a longo prazo), então a verdade em si entra como uma escolha baseada em fé, pois não possui argumentos válidos que a defenda. Ademais, é reconhecido que algumas mentiras podem ser muito mais benéficas do que prejudiciais, como, por exemplo, a existência de Papai Noel, do Coelhinho da Páscoa e dos gigantes. Ou até mesmo histórias lendárias contadas de forma pouco realista e mais fantasiosa, com o intuito de dar mais sabor e encanto ao prosaico cotidiano, como sugerem genialmente filmes como Don Juan de Marco e Peixe Grande, por exemplo.
Contudo, o monógamo costumar fugir de uma questão-chave: omitir é mentir? Trata-se certamente de um beco sem saída. Se ele disser que não, estará assumindo que revelar os desejos e impulsos pode ter péssimas conseqüências para a relação. Mas se ele afirmar que sim, estará entrando em contradição com o próprio argumento, já que o ataque à mentira é a principal base argumentativa do monógamo. Em suma, nenhuma das duas respostas consegue se sustentar, apenas demonstrando a fragilidade da monogamia como posição ideológica.
“Essa é uma postura instintiva”, outros alegam. Mas ao olharmos para a natureza e para a História, percebe-se que ocorre exatamente o oposto. A natureza visa a disseminação da vida, tendo logicamente a monogamia muito mais como um obstáculo do que como aliada. E a História nos retrata as origens da monogamia apenas como um resumo de machismo e praticidade econômica/familiar. Até mesmo em nível estatístico, a poligamia sempre prevaleceu, em qualquer época ou lugar.
Outro argumento muito difundido é o do amor auto-suficiente: “quando amamos alguém de verdade, esse alguém já nos basta”. Segundo Barash, “o mais poderoso mito que envolve a monogamia é aquele que diz que, ao encontrarmos o amor das nossas vidas, nos dedicaríamos inteiramente a ele. A biologia mostra que há um lado irracional e animal no comportamento humano”. Regina Lins pensa que “essa mesquinharia afetiva se desenvolveu a partir da crença de que somente através da relação amorosa estável com uma única pessoa é que vamos nos sentir completos e livres da sensação de desamparo. Não é à toa que exigimos que o outro seja tudo para nós e nos esforçamos para ser tudo para ele, mesmo à custa do empobrecimento da nossa própria vida (…). Podemos amar [pessoas] com a mesma intensidade, do mesmo jeito ou diferente. Acontece o tempo todo, mas ninguém gosta de admitir. A questão é que nos cobramos a rapidamente fazer uma opção, descartar uma pessoa em benefício da outra, embora essa atitude costume vir acompanhada de muitas dúvidas e conflitos”.
Existem ainda aqueles que, depois de muito refletir a respeitam do assunto, optam pelo argumento que sugere uma influência sócio-cultural. Provavelmente, trata-se do argumento mais pertinente que o monógamo expõe. O seu grande problema é a tendência a um apelo à ignorância. É inegável o fato de que uma pessoa é parte de sua época e sociedade. Mesmo estando um pouco à frente (ou atrás) de seu tempo, todos são, de alguma forma, parte dele. Mas isso não quer dizer que as idéias defendidas sejam unicamente apoiadas e influenciadas pelo pensamento daquela época/sociedade. Mesmo porque, ao defender uma idéia – no caso a monogamia – é de se esperar argumentos que a sustente. O que não deve ocorrer é apoiar todo o argumento numa entidade externa a si, como numa tentativa de se ver livre de qualquer objeção ou crítica. Agir assim seria admitir que o meio tem um poder e influência imutáveis, assumindo dessa forma uma completa falta de senso crítico. A grosso modo, seria como dizer que se ouve hip-hop porque é o que mais toca no rádio.
Muitos podem argumentar que na vida moderna as características animais/instintivas não possuem mais sentido, como sugere uma das defesas mais clássicas: “o que diferencia os homens dos outros animais é justamente a sua capacidade de raciocinar, de não agir apenas instintivamente”. Mas não é tão simples assim. As heranças genéticas que o ser humano carrega possuem um poder de atuação muito elevado. Somos, em parte, muito regidos por instintos. E somente para citar alguns: as tantas fobias (escuro, altura, locais fechados etc), fome, desejo sexual, proteção aos filhos, medo do desconhecido, entre muitos outros. Curioso é reparar que todos eles têm como regra básica a preservação e disseminação da vida.
“Ter vontade de trair, todo mundo tem. Assim como temos vontade de matar ou de pegar algo que não nos pertence. Para isso temos nossa consciência”. Eis certamente o argumento mais falacioso (e hipócrita) em defesa da monogamia. Começa admitindo o óbvio, ou seja, de que o impulso de “trair” é unânime. Mas logo depois, por falta de um argumento concreto e auto-suficiente, sugere, de saída, uma analogia, que tende a um apelo à ignorância. Ao contrário de um homicídio e/ou de um roubo, o adultério não denigre em nada a sociedade. Como já explicado acima, a chamada “traição” não possui (obrigatoriamente) um peso prático, o que difere de forma gritante de um assassinato, por exemplo. Por fim, o argumento esquece de justificar o motivo pelo qual deve ser evitada a poligamia.
“Ainda não evoluímos o suficiente para sermos monogâmicos”, seria, pelo o que parece, a última (e desesperada) argumentação daquele que defende a monogamia. Primeiramente, trata-se de uma mistura (ou confusão) entre conceitos científicos e preceitos morais. O que podemos caracterizá-la como uma espécie de apelação (ou ingenuidade?). Em seguida, carece de um referencial o qual proponha que o “aprimoramento” do indivíduo (moral, social etc.) tende a levá-lo à monogamia. Por fim, quem defende esse argumento parece esquecer de explicar e provar que (por ser monógamo) é mais “evoluído” que os demais.
O exemplo do melhor ano vivido pelo monógamo, citado mais acima, embora teórico, representa o comportamento dele na prática. Ou seja, o adepto da monogamia dá menos ênfase ao momento em si (quando está com seu parceiro), e mais importância a um ideal irrelevante em termos práticos e sem nenhuma base argumentativa que se sustente. Chega a ponto de invalidar toda uma relação, que no seu decorrer foi o melhor momento de sua vida, em função da notícia de que durante esse período foi “traído”.
Sim, é uma opção. Cada um tem o direito de optar pelo o que bem entender, ou melhor, bem preferir. E o ser humano, mais do que qualquer outro animal, tem esse poder de escolha. Mas ele não é só escolha, pois muitas de suas atitudes sofrem influências de inúmeros instintos herdados ao longo do caminho evolutivo. O que se mostra demasiado curioso é o fervor com que a monogamia é comumente defendida, assim como a tentativa de denegrir a imagem de alguém que não aceita tal idéia infundada. Os monógamos deveriam ser menos radicais, e admitirem a grande fragilidade de sua posição e argumentação.
É de opinião unânime que durante o período de duração da paixão, a tendência dos enamorados seja a observância da monogamia. A paixão, por definição, é exclusivista e excludente. No entanto, é bastante comum que, ao término desse período de intensas emoções, os parceiros venham a sentir, cada um a sua maneira, atração por outras pessoas. Tal tendência é mais acentuada entre os homens (há razões históricas e biológicas para isso), mas também ocorre com as mulheres. Some-se a isso, o fato de que a intensidade do desejo sexual tende a diminuir com o término da paixão e o prolongamento da relação, como explica o psiquiatra americano James Leckman, da Universidade Yale, um dos principais estudiosos das raízes biológicas do amor. Ele diz que “ao dotar o ser humano da capacidade de se apaixonar, a mãe natureza só queria forçar dois corpos a se aproximar o suficiente para procriar?. E conclui que a duração média da paixão equivale ao tempo exigido para a concepção, a gestação e o nascimento do bebê, ou seja, no máximo quatro anos. Napoleão, o Imperador, chegava a afirmar que o caminho mais curto para a gradativa indiferença sexual seja exatamente a monogamia continuada. Regina Lins, embora menos radical, compartilha de uma opinião não muito diferente. Ela enfatiza que o desejo sexual está ligado a magia, encantamento e descobertas, e que isso só acontece no início de uma relação estável, pois depois que a rotina entre em cena, o tesão desaparece.
Negar o eventual desejo ou atração por outras pessoas além do parceiro, é certamente uma mentira. Regina Lins lembra que: “Reprimir os verdadeiros desejos não significa eliminá-los. Quando a fidelidade se traduz por concessão que se faz ao outro, o preço se torna muito alto e pode inviabilizar a relação”. Em casos mais extremos, tal comportamento pode ser traduzido como uma auto-reprovação de uma atitude pré-estabelecida como errada. Nesse aspecto, os monógamos podem ser divididos em dois grupos: os que dizem sentir atração por outra pessoa além do próprio parceiro, mas que, na prática, reprimem esse desejo, e aqueles que dizem não sentir nenhum desejo enquanto estão dentro de uma relação. Neste último caso – não contando o fator paixão, claro – é comum encontrar pessoas que, com ou sem parceiros, não apresentem muito interesse por uma relação que envolva o erótico ou o sensual, ou então talvez sejam mais inertes com suas atitudes.
Ao que tudo indica, o termo “traição” é utilizado pelo monógamo de forma equivocada. Além de sua indisfarçada conotação moralista, ele propõe gratuitamente o sentimento de culpa, certamente para se tornar intocável e inabalável. O mais coerente seria considerar a traição o ato de negar o próprio desejo – que, como já se viu, não possui necessariamente efeitos colaterais perniciosos. Mazzini alerta para o fato de que mesmo pessoas que se mantém monogâmicas por obrigação, podem estar traindo o parceiro. Segundo ele, isso ocorre toda vez que uma relação é mantida sem amor, mas apenas por conveniência econômica ou social. Não fica difícil, pois, admitir que a traição está na falsificação do sentimento, e não nos atos de cada um.
Quanto ao fato de os homens terem uma maior propensão a não seguir a monogamia – apesar de comumente pregá-la – isso se deve principalmente a dois fatores, um histórico e outro biológico. O homem era quem saia de casa para caçar, era ele quem tinha o instinto de busca, e, por conseguinte, era quem conhecia mais o lado de fora de seu habitat. A mulher, ao contrário, estava restrita a um espaço pequeno, e nada de novo havia para ser explorado. Daí, certamente, a tendência maior das mulheres à inércia de seus relacionamentos com os homens. Segundo Barash e Lipton, “o fato de praticamente não ocorrer monogamia na natureza (e de os machos serem tão volúveis e vorazes em seus apetites sexuais) pode ser explicado por uma contabilidade evolutiva. Para a natureza o esperma é infinitamente mais barato que óvulos, ou seja, um macho normal de qualquer espécie pode produzir milhares de espermatozóides todos os dias e está sempre à disposição para novos intercursos sexuais, enquanto as fêmeas ovulam bem menos e – em caso de fecundação – têm que arcar com um grande número de responsabilidades, que os pesquisadores costumam qualificar com a expressão “investimento parental”, extremamente mais acentuada nas fêmeas”.
Um detalhe importante a ser lembrado é o fato de que os homens têm maior facilidade para sentirem atração e desejo sexual com o visual (uma mulher de saia e decote caminhando pela rua, por exemplo), ao passo que as mulheres têm sua sensibilidade mais voltada para o tato. Como é muito mais fácil e comum ver pessoas do que tocá-las, não é de se estranhar que o homem tenda a sentir desejo sexual consideravelmente mais vezes do que as mulheres. E ao contrário de um toque “mais sutil e íntimo”, o visual é conhecido por ter uma conotação sexual cada vez mais explícita.
Aliado a tudo isso, há um outro fator biológico que explicitamente diferencia o potencial reprodutivo entre machos e fêmeas. O que um único homem pode fazer, por exemplo, com dez mulheres, em termos de reprodução, é o inverso do que uma única mulher pode fazer com dez homens. O macho, nesse aspecto, tem um instinto que tende mais à poligamia por uma questão prática reprodutiva, que é o instinto predominante entre todos os seres vivos. Já as fêmeas (de qualquer espécie), devido à sua limitação reprodutiva e seu “investimento parental” muito mais acentuado, tendem mais por serem objetos de disputa.
Mas isso não quer dizer que elas sejam necessariamente monogâmicas. Segundo o biólogo Tim Birkhead, da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, “as fêmeas da maioria das espécies – do gafanhoto ao chimpanzé – acasalam com vários machos. Entre os bonobos – os primatas mais parecidos com o homem – mais da metade da prole de uma mãe é composta de filhos que não foram concebidos pelo seu parceiro habitual”. Tal argumentação, baseada em fatos, implode o argumento de que as fêmeas são projetadas pela natureza para serem fiéis. Por sua vez, a antropóloga norte-americana Helen Fisher, da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, observa que “a idéia de que só os homens são poligâmicos é o maior mito da sexualidade”. Ela estudou o comportamento sexual de homens e mulheres em 62 sociedades ao redor do mundo, e concluiu que o adultério (em ambos os sexos) é tão comum quanto o casamento. “É claro que muitas mulheres (e homens também) optam por serem fiéis. Mas isso é uma escolha, não uma imposição biológica”, conclui.
Mazzini encerra sua argumentação ao afirmar que “o casamento não foi feito para nos fazer feliz, pois não passa de um contrato social, embora nos seja apresentado como o grande caminho para a felicidade”. E arrisca ao conjecturar que talvez seja esse o maior engodo da história da humanidade. Regina Lins é da opinião de que “quando tudo é conhecido, se não existe nada no parceiro que não se saiba, não há surpresa, não há nenhuma novidade, não há descoberta. O que existe, como conseqüência natural dessa vida tão sem emoção, é um profundo desinteresse. É assim com a maioria dos casais. Optam pela monotonia e pelo tédio porque não suportam as surpresas de uma vida sem garantias preestabelecidas. Isso não passa de uma ilusão”. O que não se pode negar é que a monogamia, de sua origem à sua prática atual, sempre esteve em volta de fragilidades e hipocrisias.
Para ler:
Segundo o dicionário Houaiss, monogamia significa: regime ou costume em que é imposto ao homem ou à mulher ter apenas um cônjuge, enquanto se mantiver vigente o seu casamento ou qualquer tipo de relacionamento que envolva o desejo sexual
O primeiro relato de monogamia que se tem na História remete ao antigo Egito, cerca de 900 a.C. Segundo os arqueólogos, naquela antiga civilização as uniões já eram instituições formais, como mostram diversas obras de arte daquele povo. Havia contratos de casamento, onde já eram estabelecidos os direitos da esposa em caso de divórcio ou viuvez. Segundo o professor de História Danilo José Figueiredo, “apesar de a monogamia ser a regra, o Faraó, e apenas ele, estava livre para se casar com quantas mulheres quisesse. Essas mulheres eram distribuídas em três categorias de importância: concubinas, Esposas Secundárias e a Grande Mulher do Rei. Qualquer mulher que o Faraó desejasse (…) poderia ser uma Concubina. Essas esposas terciárias habitavam o harém do Faraó e eram verdadeiras escravas sexuais do Semi-Deus. Estavam sempre bem limpas e cuidadas estando à disposição do Faraó para saciar seus impulsos sexuais”.
Na antiga Grécia predominava um machismo não muito diferente. Mulheres, crianças e escravos eram propriedade dos homens. A importância da mulher na sociedade grega era tão insignificante que nem mesmo em seu noivado – quase sempre contra sua vontade – ela podia comparecer. E logo após o casamento, os homens, no intuito de evitar o adultério de suas esposas, adquiriam cães ferozes e/ou eunucos (homens castrados que tinham como única função vigiar a esposa de seu patrão). Em Esparta, na mesma época, a poligamia era uma prática comum e socialmente aceitável, onde homens podiam ter várias mulheres ou até mesmo dividirem uma única.
No Império Romano o casamento funcionava apenas como um meio para manutenção da família. A idéia era de que à esposa cabia apenas a função de procriadora. Assim, o prazer erótico (ou o desfrute sensual) ficava reservado às amantes, transformadas em concubinas e aceitas pela sociedade. A palavra matrimonium era usada para definir o papel da mulher casada, ou seja, o de ser mãe. Em contraposição, patrimonium estabelecia o papel que cabia ao homem, que era o de gerir os bens.
Percebe-se que, ao contrário do que se possa pensar, a monogamia não foi fruto do amor individual. Na obra A ideologia alemã, Marxs e Engels afirmam que “os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para deles herdarem. Quanto ao mais, o casamento era para eles uma carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que estavam obrigados a cumprir”. Os autores observam ainda que “a monogamia não aparece na história, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre sexos”.
No artigo intitulado Vos declaro marido e mulher, publicado pela revista Super Interessante (05/1996), os autores lembram ainda que, ao reconhecer o significado político do casamento, a Igreja instituiu, em meados do século IX, a cerimônia religiosa, a qual não vigorou de imediato. Até então ela não admitia que no casamento pudesse haver um bem positivo ou que o afeto entre o marido e a mulher fosse belo e desejável. Resultado: o casamento era visto como algo repugnante e poluído, definindo até mesmo como superior quem optava por não casar. Somente a partir de 1439, depois que o Concílio de Florença transformou o matrimônio no sétimo sacramento, o papa Eugênio IV conseguiu impor sua autoridade. O casamento tornou-se então indissolúvel – “o que Deus une, o homem não separa” -, e a poligamia e o concubinato, interditados. Regras que prevalecem até os dias atuais. Graças à consideração do casamento como sacramento e do adultério como pecado, a Igreja passava a assumir a responsabilidade pela criação do sentimento de culpa – no caso do rompimento do contrato de fidelidade – entre os cônjuges. A ela é igualmente lícito atribuir-se a intocabilidade deste mito, que é a monogamia.
Contrariando o que comumente se diz, a poligamia é consideravelmente mais presente do que a monogamia. Recentes pesquisas antropológicas, efetuadas em universidades americanas, indicam que numa lista dos 250 povos mais importantes, estudados no início do século passado, nada menos que 193 adotavam a poligamia. Considerando que o discurso predominante defende o contrato de fidelidade, a conclusão não menos óbvia é de que a monogamia é o discurso da hipocrisia.
Atualmente a monogamia pode ser a regra, mas não é a prática corrente – nem mesmo para os animais. Recorrendo à mesma tecnologia do DNA utilizada nos tribunais, os biólogos hoje são capazes de determinar com absoluta segurança a paternidade nos animais. Os resultados têm sido surpreendentes: mesmo entre as espécies anteriormente consideradas monogâmicas – a esmagadora minoria -, enganar o parceiro é uma prática comum, e para ambos os sexos. É o que dizem David P. Barash e Judith Eve Lipton, autores do livro O mito da monogamia: fidelidade e infidelidade em animais e pessoas. Segundo eles, novas pesquisas científicas permitiram alcançar respostas definitivas para algumas perguntas, fazendo concluir que, ao contrário do que se pensa, o desejo sexual por múltiplos parceiros é natural.
Do ponto de vista estritamente social, os pilares da monogamia surgem e se mantém a partir da idéia da importância da família, da sua manutenção como uma entidade íntegra e harmoniosa. Segundo Engels, a monogamia teria sido “a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas e, em concreto, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente”. Fato é que muitos casamentos já esgotados, com a data de validade vencida há muito tempo, ainda perduram por anos. Além do desejo de se manter a integridade familiar, ainda existe o fator econômico, com os seus imperativos e exigências peculiares. A psicóloga Regina Navarro Lins, em seu livro Na cabeceira da cama, ressalta que a idéia atual do casamento “até que a morte os separe” não possui nenhum fundamento, já que as pessoas até a Revolução Industrial, no final do século XVIII, moravam predominantemente no campo, o que as fazia sentir afetivamente amparadas. Nessa época, os casamentos aconteciam por razões econômicas e políticas, e por essa razão é que duravam a vida toda. A autora ainda lembra que não havendo romance nem expectativas de satisfação sexual, não havia decepções, e ninguém pensava em se separar.
Apesar de sua herança pouco ética e bastante discutível, a monogamia mantém-se alicerçada, até os tempos atuais, no sentimento de posse e seu sucedâneo mais comum e doloroso, o ciúme. Trata-se, sem dúvida, de um estado emocional bastante complexo, que leva um indivíduo a se sentir único e especial numa relação. Assim é definido o amor romântico, que, com mais de 800 anos, certamente é uma das propagandas mais bem difundida e sucedida da História. Seu carro-chefe, conhecido mundialmente, é a história de amor entre Romeu e Julieta, escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. No término da história, os dois protagonistas preferem morrer a viver um sem o outro. Para completar, a partir da década 40, o amor romântico é fortemente alimentado por Hollywood. “Existe uma campanha, incorporada por todos os meios de comunicação, que procura nos convencer de que só é possível ser feliz vivendo um romance, que traz a ilusão do amor verdadeiro. Tão grande quanto o desejo de vivê-lo. Por isso, poucos suportam ouvir que, apesar de toda a magia prometida, ele não passa de uma mentira. Sem contar que traz mais tristeza do que alegria, além de muito sofrimento”, observa Regina Lins. Entre as características deste mito, ela questiona a veracidade de pontos como: só é possível amar uma pessoa de cada vez; quem ama não sente tesão por mais ninguém; o amado é a única fonte de interesse do outro; quem ama sente desejo sexual pela mesma pessoa a vida inteira; qualquer atividade só tem graça se a pessoa amada estiver presente; todos devem encontrar um dia a pessoa certa; o amor verdadeiro é completo e insubstituível.
Atrelado a este sentimento de posse, vem o medo de descobrir que não se é único e insubstituível. O webmaster do site Poliamor Brasil, Mario Mazzini, também médico e escritor, observa que “a monogamia é muito baseada no ciúme, que é (…) fruto da insegurança, do medo de perder um objeto afetivo que é visto como essencial à sobrevivência. Crianças sentem ciúme dos irmãos, do pai ou da mãe, porque são incapazes de viver sem o apoio dos pais. Adultos autônomos não teriam porque ter esse sentimento, a menos que mantenham uma insegurança de nível infantil. A idéia de uma relação monogâmica exclusiva é uma forma de satisfazer o desejo infantil de ser o dono exclusivo(…), e assim evitar o medo da perda gerado pela insegurança”.
Tal insegurança, representada como defesa na prática da monogamia, visa também diminuir as chances de comparações, constatações e perdas que supostamente viessem a ocorrer caso o contrato de fidelidade não existisse, e, por conseqüência, houvesse liberdade e espaço para a poligamia. A respeito desse eventual aumento das chances de perda do parceiro, caso ele não seja adepto da monogamia, Mazzini lembra que “o risco está presente sempre em qualquer relação, mesmo que não estejamos conscientes dele. O fato de alguém ter liberdade para ter relações extraconjugais não aumenta necessariamente este risco, podendo até mesmo diminuí-lo. Uma das causas da deterioração das relações conjugais é justamente a sensação de garantia de sua manutenção; em função disso os cônjuges acabam por não se esforçar muito para manter o interesse do outro na relação”. Ele ressalta ainda um ponto interessante e comumente bastante deturpado, quando o assunto é abordado: “Já vimos através de opiniões de outras pessoas – inclusive através de artigos e pesquisas sobre a motivação dos casos extraconjugais – que, muito freqüentemente, o que motiva as pessoas a terem casos extraconjugais é a insatisfação com o atual cônjuge. Ou seja, a insatisfação com o cônjuge nesses casos não se instala a partir da relação extraconjugal, mas a precede”. E finalmente conclui que “o fato de os cônjuges se permitirem ter relações extraconjugais, enquanto as coisas ainda estão bem entre eles, na verdade favorece o auto-conhecimento e o conhecimento do outro, (…) mas se acontecer de uma das partes preferir terminar a relação atual e partir para uma outra relação, é porque esta relação já não era suficientemente satisfatória. E, se assim for, isto ocorreria de qualquer forma, com ou sem liberdade para relacionamentos extraconjugais.”
Como já constatado, a atração física e o desejo sexual por alguém além do parceiro, é um instinto comum e inegável entre os animais – o que nos inclui, claro. Com o ser humano, no entanto, o que prevalece é o desejo de que o parceiro seja monogâmico (pelos motivos já explicados acima), e a tentativa desesperada de manter uma coerência nesse aspecto, tornando assim, mesmo que contra o próprio instinto, toda a relação monogâmica. Segundo a antropóloga americana Margaret Mead, “a monogamia é o mais difícil dos arranjos maritais entre humanos”. Não é de se admirar, portanto, a inevitabilidade do conflito gerado entre o que é certo socialmente e aquilo que se deseja intimamente. Em larga medida, trata-se de um conflito não resolvido. E na sua irresolução, pode surgir o que comumente chama-se de “traição”.
Dá-se o nome de “traição” quando ocorre a ruptura do contrato de fidelidade de uma ou ambas as partes em um relacionamento que envolva o desejo sexual. Essa atitude põe por água abaixo o conceito de monogamia previamente “combinado” ou, o que é mais comum, implícito nos relacionamentos atuais. Ela possui algumas peculiaridades muitíssimo curiosas, desde a relação entre sua existência e as conseqüências práticas até a aparente imperdoabilidade de quem se sente “traído”.
Quando somos roubados, não importa se somos avisados, o roubo não perde sua característica por causa disso. Quando perdemos um ente querido, a própria ausência dele já nos traduz todo o sentimento de perda que a situação envolve; talvez aconteça de sentirmos essa perda ao saber, mas isso é apenas o adiantamento do sentimento de perda que certa hora chegará por vias práticas, afinal de contas, se você não sente falta de alguém, perder essa pessoa não será algo muito relevante em sua vida. Até mesmo quando somos insultados há um peso prático, pois a atitude apenas traduz a agressividade da situação. Podemos ainda citar a própria “traição”, que, acarretando numa diminuição da dedicação oferecida pelo “parceiro-traidor”, já apresenta um motivo prático e auto-suficiente para sua negação; não sendo necessária assim sua afirmação verbal.
Para o monógamo, o que importa é o simples – e irrelevante – saber do que ele chama de “traição” (mais abaixo há uma outra visão deste termo). Mas essa atitude não gera obrigatoriamente um efeito prático, nem mesmo de forma indireta. O rompimento não necessita de uma causa prática, mas unicamente ideal. Ou seja, a “traição”, ocorrendo sem que seja verbalizada, não é (necessariamente) percebida pelo parceiro “traído”. Curiosamente ela também inexiste no mundo prático do “parceiro traído”, caso ele tome conhecimento. Conclui-se então que ela não possui necessariamente – e raramente – um peso prático, mas simplesmente ideológico, especialmente por tentar sempre ser justificada, já que dificilmente se encontra um monógamo admitindo que sua escolha é basicamente uma questão de gosto, ou seja, não possui qualquer explicação ou razão aparente.
Com uma visão bem crítica a respeito dessa posição, Regina Lins diz que “a única coisa que importa numa relação é a própria relação, os dois estarem juntos porque gostam da companhia um do outro e fazerem sexo porque sentem prazer. Todas as restrições impostas e aceitas com naturalidade ameaçam muito mais a relação do que a infidelidade”. Já Mazzini contesta a posição monogâmica alegando que “podemos ter vários amigos, mas não nos permitimos ter vários amantes. Um pai e uma mãe podem ter vários filhos e amar a todos, não igualmente, mas a cada um de forma diferente, ou seja, há espaço para todos. Portanto, o fato de se desejar ter uma relação com outra pessoa, e eventualmente realizar este desejo, não significa que se tenha deixado de amar ou se esteja insatisfeito como o parceiro, significa apenas que uma pessoa só, por melhor companheira que seja, pode não ser capaz de preencher todas as necessidades afetiva. Um relacionamento eventual com outra pessoa não prejudica [necessariamente] a relação principal, pelo contrário, pode até ajudar na manutenção e melhora da mesma, uma vez que cada um deixa de sentir o outro como um carcereiro. E não há nada de errado (a não ser devido a um tabu) em ter outros relacionamentos eventuais, sem que isto afete a relação estável com um parceiro com o qual se escolheu partilhar os demais aspectos da vida, inclusive a maternidade/paternidade”.
É unânime entre quem adota monogamia: numa situação hipotética, onde é vivido o melhor ano da vida de um monógamo, graças a um amor até então utópico, onde o parceiro proporciona atenção, dedicação, carinho, prazer e momentos únicos que beiram a perfeição; tudo isso deixa de ter seu valor se no fim desse ano o monógamo fica sabendo que seu parceiro manteve nesse período casos paralelos. Esse momento especial vivido e sentido se esvai graças a uma idéia que, ao que tudo indica, beira a insanidade. Numa recente pesquisa sobre o casamento ideal, realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenada pela antropóloga Miriam Goldenberg, foi constatado que a esmagadora maioria de homens e mulheres considera, entre outras coisas, a fidelidade mais importante do que o companheirismo, sinceridade e carinho, por exemplo. As justificativas dadas por essas pessoas tendem quase sempre a uma falácia circular, ou seja, demonstra que a conclusão é apenas um outro modo de expressar uma das premissas.
É importante ressaltar os inúmeros relacionamentos que se desgastam, ou até mesmo deixam de existir, quando um dos parceiros se sente “traído”. A quebra da monogamia, segundo quem a pratica, se apresenta como algo gravíssimo e imperdoável. Não é raro ouvir quem admita tolerar tudo (ou quase tudo) num relacionamento, menos a “traição”. Eis aqui uma demonstração da tentativa de cumprir, de forma inquestionável, o amor romântico. A princípio, é comum imaginar que esta posição tenha algum tipo de embasamento ou justificativa – ainda mais considerando a convicção com que é propalada. E como é possível notar, a monogamia raramente é afirmada como apenas uma preferência, sem grandes pretensões para qualquer tipo de explicação ou razão, como acontece com as escolhas por uma dada cor, comida ou cheiro, por exemplo. Sendo assim, ela é uma posição ideológica, necessitando, portanto, de uma base argumentativa.
Muitos podem justificar essa posição alegando que a mentira por si só já é motivo para invalidar a “traição”. Você gostaria de saber que foi enganado? Confiaria em alguém que já mentiu para você? Uma mentira agradável pra você é melhor do que uma verdade cruel? Eis certamente algumas das questões levantadas durante a contra-argumentação do monógamo. E aqui entra inclusive a ética, tornando as questões então ainda mais importantes e delicadas. Mas é preciso salientar dois pontos:
1- Por que mentir? Na verdade, a chamada “traição” só passa a ser uma mentira quando se pré-estabelece um relacionamento monogâmico. Então não há sentido em se mentir quando é possível deixar tudo de forma bem clara e honesta, ou seja, não propondo a monogamia.
2- Na prática, o que é a mentira? Quando se diz “vou te pagar 40″, mas se paga apenas 30, essa mentira tem um peso prático, ou seja, ela é percebida, independente da mesma ser verbalizada ou não. Ou quando se diz “volto às 21:00″, mas na realidade se volta às 10, essa mentira, mais uma vez, tem um valor prático e não depende de sua afirmação, pois por si só já é percebida. Que peso teria “traição” se sua existência fosse desconhecida? A resposta é óbvia: nenhum.
Apesar de o rompimento do contrato de fidelidade não gerar nenhuma mudança inerente, o monógamo costumar argumentar: “mas você gostaria que alguém mentisse para você?”. Essa pergunta gera automaticamente uma contra-pergunta: “qual seria a influência prática dessa mentira?”. Sim, é claro que todos tendem a preferir a verdade. Mas no caso se escolhe a verdade pela verdade apenas, ou a verdade por um motivo? Por que a verdade?
Buscamos a verdade para não sermos enganados, ou seja, manipulados e prejudicados de alguma forma. Se a mentira não provoca nenhum tipo de dano (mesmo a longo prazo), então a verdade em si entra como uma escolha baseada em fé, pois não possui argumentos válidos que a defenda. Ademais, é reconhecido que algumas mentiras podem ser muito mais benéficas do que prejudiciais, como, por exemplo, a existência de Papai Noel, do Coelhinho da Páscoa e dos gigantes. Ou até mesmo histórias lendárias contadas de forma pouco realista e mais fantasiosa, com o intuito de dar mais sabor e encanto ao prosaico cotidiano, como sugerem genialmente filmes como Don Juan de Marco e Peixe Grande, por exemplo.
Contudo, o monógamo costumar fugir de uma questão-chave: omitir é mentir? Trata-se certamente de um beco sem saída. Se ele disser que não, estará assumindo que revelar os desejos e impulsos pode ter péssimas conseqüências para a relação. Mas se ele afirmar que sim, estará entrando em contradição com o próprio argumento, já que o ataque à mentira é a principal base argumentativa do monógamo. Em suma, nenhuma das duas respostas consegue se sustentar, apenas demonstrando a fragilidade da monogamia como posição ideológica.
“Essa é uma postura instintiva”, outros alegam. Mas ao olharmos para a natureza e para a História, percebe-se que ocorre exatamente o oposto. A natureza visa a disseminação da vida, tendo logicamente a monogamia muito mais como um obstáculo do que como aliada. E a História nos retrata as origens da monogamia apenas como um resumo de machismo e praticidade econômica/familiar. Até mesmo em nível estatístico, a poligamia sempre prevaleceu, em qualquer época ou lugar.
Outro argumento muito difundido é o do amor auto-suficiente: “quando amamos alguém de verdade, esse alguém já nos basta”. Segundo Barash, “o mais poderoso mito que envolve a monogamia é aquele que diz que, ao encontrarmos o amor das nossas vidas, nos dedicaríamos inteiramente a ele. A biologia mostra que há um lado irracional e animal no comportamento humano”. Regina Lins pensa que “essa mesquinharia afetiva se desenvolveu a partir da crença de que somente através da relação amorosa estável com uma única pessoa é que vamos nos sentir completos e livres da sensação de desamparo. Não é à toa que exigimos que o outro seja tudo para nós e nos esforçamos para ser tudo para ele, mesmo à custa do empobrecimento da nossa própria vida (…). Podemos amar [pessoas] com a mesma intensidade, do mesmo jeito ou diferente. Acontece o tempo todo, mas ninguém gosta de admitir. A questão é que nos cobramos a rapidamente fazer uma opção, descartar uma pessoa em benefício da outra, embora essa atitude costume vir acompanhada de muitas dúvidas e conflitos”.
Existem ainda aqueles que, depois de muito refletir a respeitam do assunto, optam pelo argumento que sugere uma influência sócio-cultural. Provavelmente, trata-se do argumento mais pertinente que o monógamo expõe. O seu grande problema é a tendência a um apelo à ignorância. É inegável o fato de que uma pessoa é parte de sua época e sociedade. Mesmo estando um pouco à frente (ou atrás) de seu tempo, todos são, de alguma forma, parte dele. Mas isso não quer dizer que as idéias defendidas sejam unicamente apoiadas e influenciadas pelo pensamento daquela época/sociedade. Mesmo porque, ao defender uma idéia – no caso a monogamia – é de se esperar argumentos que a sustente. O que não deve ocorrer é apoiar todo o argumento numa entidade externa a si, como numa tentativa de se ver livre de qualquer objeção ou crítica. Agir assim seria admitir que o meio tem um poder e influência imutáveis, assumindo dessa forma uma completa falta de senso crítico. A grosso modo, seria como dizer que se ouve hip-hop porque é o que mais toca no rádio.
Muitos podem argumentar que na vida moderna as características animais/instintivas não possuem mais sentido, como sugere uma das defesas mais clássicas: “o que diferencia os homens dos outros animais é justamente a sua capacidade de raciocinar, de não agir apenas instintivamente”. Mas não é tão simples assim. As heranças genéticas que o ser humano carrega possuem um poder de atuação muito elevado. Somos, em parte, muito regidos por instintos. E somente para citar alguns: as tantas fobias (escuro, altura, locais fechados etc), fome, desejo sexual, proteção aos filhos, medo do desconhecido, entre muitos outros. Curioso é reparar que todos eles têm como regra básica a preservação e disseminação da vida.
“Ter vontade de trair, todo mundo tem. Assim como temos vontade de matar ou de pegar algo que não nos pertence. Para isso temos nossa consciência”. Eis certamente o argumento mais falacioso (e hipócrita) em defesa da monogamia. Começa admitindo o óbvio, ou seja, de que o impulso de “trair” é unânime. Mas logo depois, por falta de um argumento concreto e auto-suficiente, sugere, de saída, uma analogia, que tende a um apelo à ignorância. Ao contrário de um homicídio e/ou de um roubo, o adultério não denigre em nada a sociedade. Como já explicado acima, a chamada “traição” não possui (obrigatoriamente) um peso prático, o que difere de forma gritante de um assassinato, por exemplo. Por fim, o argumento esquece de justificar o motivo pelo qual deve ser evitada a poligamia.
“Ainda não evoluímos o suficiente para sermos monogâmicos”, seria, pelo o que parece, a última (e desesperada) argumentação daquele que defende a monogamia. Primeiramente, trata-se de uma mistura (ou confusão) entre conceitos científicos e preceitos morais. O que podemos caracterizá-la como uma espécie de apelação (ou ingenuidade?). Em seguida, carece de um referencial o qual proponha que o “aprimoramento” do indivíduo (moral, social etc.) tende a levá-lo à monogamia. Por fim, quem defende esse argumento parece esquecer de explicar e provar que (por ser monógamo) é mais “evoluído” que os demais.
O exemplo do melhor ano vivido pelo monógamo, citado mais acima, embora teórico, representa o comportamento dele na prática. Ou seja, o adepto da monogamia dá menos ênfase ao momento em si (quando está com seu parceiro), e mais importância a um ideal irrelevante em termos práticos e sem nenhuma base argumentativa que se sustente. Chega a ponto de invalidar toda uma relação, que no seu decorrer foi o melhor momento de sua vida, em função da notícia de que durante esse período foi “traído”.
Sim, é uma opção. Cada um tem o direito de optar pelo o que bem entender, ou melhor, bem preferir. E o ser humano, mais do que qualquer outro animal, tem esse poder de escolha. Mas ele não é só escolha, pois muitas de suas atitudes sofrem influências de inúmeros instintos herdados ao longo do caminho evolutivo. O que se mostra demasiado curioso é o fervor com que a monogamia é comumente defendida, assim como a tentativa de denegrir a imagem de alguém que não aceita tal idéia infundada. Os monógamos deveriam ser menos radicais, e admitirem a grande fragilidade de sua posição e argumentação.
É de opinião unânime que durante o período de duração da paixão, a tendência dos enamorados seja a observância da monogamia. A paixão, por definição, é exclusivista e excludente. No entanto, é bastante comum que, ao término desse período de intensas emoções, os parceiros venham a sentir, cada um a sua maneira, atração por outras pessoas. Tal tendência é mais acentuada entre os homens (há razões históricas e biológicas para isso), mas também ocorre com as mulheres. Some-se a isso, o fato de que a intensidade do desejo sexual tende a diminuir com o término da paixão e o prolongamento da relação, como explica o psiquiatra americano James Leckman, da Universidade Yale, um dos principais estudiosos das raízes biológicas do amor. Ele diz que “ao dotar o ser humano da capacidade de se apaixonar, a mãe natureza só queria forçar dois corpos a se aproximar o suficiente para procriar?. E conclui que a duração média da paixão equivale ao tempo exigido para a concepção, a gestação e o nascimento do bebê, ou seja, no máximo quatro anos. Napoleão, o Imperador, chegava a afirmar que o caminho mais curto para a gradativa indiferença sexual seja exatamente a monogamia continuada. Regina Lins, embora menos radical, compartilha de uma opinião não muito diferente. Ela enfatiza que o desejo sexual está ligado a magia, encantamento e descobertas, e que isso só acontece no início de uma relação estável, pois depois que a rotina entre em cena, o tesão desaparece.
Negar o eventual desejo ou atração por outras pessoas além do parceiro, é certamente uma mentira. Regina Lins lembra que: “Reprimir os verdadeiros desejos não significa eliminá-los. Quando a fidelidade se traduz por concessão que se faz ao outro, o preço se torna muito alto e pode inviabilizar a relação”. Em casos mais extremos, tal comportamento pode ser traduzido como uma auto-reprovação de uma atitude pré-estabelecida como errada. Nesse aspecto, os monógamos podem ser divididos em dois grupos: os que dizem sentir atração por outra pessoa além do próprio parceiro, mas que, na prática, reprimem esse desejo, e aqueles que dizem não sentir nenhum desejo enquanto estão dentro de uma relação. Neste último caso – não contando o fator paixão, claro – é comum encontrar pessoas que, com ou sem parceiros, não apresentem muito interesse por uma relação que envolva o erótico ou o sensual, ou então talvez sejam mais inertes com suas atitudes.
Ao que tudo indica, o termo “traição” é utilizado pelo monógamo de forma equivocada. Além de sua indisfarçada conotação moralista, ele propõe gratuitamente o sentimento de culpa, certamente para se tornar intocável e inabalável. O mais coerente seria considerar a traição o ato de negar o próprio desejo – que, como já se viu, não possui necessariamente efeitos colaterais perniciosos. Mazzini alerta para o fato de que mesmo pessoas que se mantém monogâmicas por obrigação, podem estar traindo o parceiro. Segundo ele, isso ocorre toda vez que uma relação é mantida sem amor, mas apenas por conveniência econômica ou social. Não fica difícil, pois, admitir que a traição está na falsificação do sentimento, e não nos atos de cada um.
Quanto ao fato de os homens terem uma maior propensão a não seguir a monogamia – apesar de comumente pregá-la – isso se deve principalmente a dois fatores, um histórico e outro biológico. O homem era quem saia de casa para caçar, era ele quem tinha o instinto de busca, e, por conseguinte, era quem conhecia mais o lado de fora de seu habitat. A mulher, ao contrário, estava restrita a um espaço pequeno, e nada de novo havia para ser explorado. Daí, certamente, a tendência maior das mulheres à inércia de seus relacionamentos com os homens. Segundo Barash e Lipton, “o fato de praticamente não ocorrer monogamia na natureza (e de os machos serem tão volúveis e vorazes em seus apetites sexuais) pode ser explicado por uma contabilidade evolutiva. Para a natureza o esperma é infinitamente mais barato que óvulos, ou seja, um macho normal de qualquer espécie pode produzir milhares de espermatozóides todos os dias e está sempre à disposição para novos intercursos sexuais, enquanto as fêmeas ovulam bem menos e – em caso de fecundação – têm que arcar com um grande número de responsabilidades, que os pesquisadores costumam qualificar com a expressão “investimento parental”, extremamente mais acentuada nas fêmeas”.
Um detalhe importante a ser lembrado é o fato de que os homens têm maior facilidade para sentirem atração e desejo sexual com o visual (uma mulher de saia e decote caminhando pela rua, por exemplo), ao passo que as mulheres têm sua sensibilidade mais voltada para o tato. Como é muito mais fácil e comum ver pessoas do que tocá-las, não é de se estranhar que o homem tenda a sentir desejo sexual consideravelmente mais vezes do que as mulheres. E ao contrário de um toque “mais sutil e íntimo”, o visual é conhecido por ter uma conotação sexual cada vez mais explícita.
Aliado a tudo isso, há um outro fator biológico que explicitamente diferencia o potencial reprodutivo entre machos e fêmeas. O que um único homem pode fazer, por exemplo, com dez mulheres, em termos de reprodução, é o inverso do que uma única mulher pode fazer com dez homens. O macho, nesse aspecto, tem um instinto que tende mais à poligamia por uma questão prática reprodutiva, que é o instinto predominante entre todos os seres vivos. Já as fêmeas (de qualquer espécie), devido à sua limitação reprodutiva e seu “investimento parental” muito mais acentuado, tendem mais por serem objetos de disputa.
Mas isso não quer dizer que elas sejam necessariamente monogâmicas. Segundo o biólogo Tim Birkhead, da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, “as fêmeas da maioria das espécies – do gafanhoto ao chimpanzé – acasalam com vários machos. Entre os bonobos – os primatas mais parecidos com o homem – mais da metade da prole de uma mãe é composta de filhos que não foram concebidos pelo seu parceiro habitual”. Tal argumentação, baseada em fatos, implode o argumento de que as fêmeas são projetadas pela natureza para serem fiéis. Por sua vez, a antropóloga norte-americana Helen Fisher, da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, observa que “a idéia de que só os homens são poligâmicos é o maior mito da sexualidade”. Ela estudou o comportamento sexual de homens e mulheres em 62 sociedades ao redor do mundo, e concluiu que o adultério (em ambos os sexos) é tão comum quanto o casamento. “É claro que muitas mulheres (e homens também) optam por serem fiéis. Mas isso é uma escolha, não uma imposição biológica”, conclui.
Mazzini encerra sua argumentação ao afirmar que “o casamento não foi feito para nos fazer feliz, pois não passa de um contrato social, embora nos seja apresentado como o grande caminho para a felicidade”. E arrisca ao conjecturar que talvez seja esse o maior engodo da história da humanidade. Regina Lins é da opinião de que “quando tudo é conhecido, se não existe nada no parceiro que não se saiba, não há surpresa, não há nenhuma novidade, não há descoberta. O que existe, como conseqüência natural dessa vida tão sem emoção, é um profundo desinteresse. É assim com a maioria dos casais. Optam pela monotonia e pelo tédio porque não suportam as surpresas de uma vida sem garantias preestabelecidas. Isso não passa de uma ilusão”. O que não se pode negar é que a monogamia, de sua origem à sua prática atual, sempre esteve em volta de fragilidades e hipocrisias.
Para ler:
- Na cabeceira da cama, de Regina Navarro Lins;
- O mito da monogamia: fidelidade e infidelidade em animais e pessoas, de David P. Barash e Judith Eve Lipton;
- http://yatros.com.br/poli, site Poliamor Brasil, por Mario Mazzini;
- A vida antes e depois da paixão, por Gabriela Carelli, artigo publicado na Veja (05/06/2002)
- Peixe grande, de Tim Burton;
- Don Juan de Marco, de Jeremy Leven
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